Toxinas clonadas podem ajudar a produzir vacina contra peçonhentos

Proteínas, aminoácidos, sais, toxinas e muitas substâncias de potencial farmacológico desconhecido. Tudo isso pode ser encontrado no veneno de animais peçonhentos.

Partindo da riqueza desses venenos, a pesquisadora Kênia Pedrosa Nunes, do programa de pós-graduação em Farmacologia Bioquímica e Molecular do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), descobriu clones (cópias produzidas a partir de vírus que têm o código do DNA de uma toxina), que codificam toxinas presentes no veneno do Tityus serrulatus, o escorpião amarelo, de grande incidência em Minas Gerais. O estudo pode resultar em soros terapêuticos mais eficientes e até na produção de vacina contra o veneno.

O trabalho de Kênia Nunes começou com o estudo da TSVII, uma potente neurotoxina presente no veneno do escorpião amarelo. “Enfrentava dificuldades para conseguir material em quantidades suficientes para o estudo, já que esta toxina corresponde a uma pequena parte do veneno. Por isso, passei a procurar um clone que a codificasse”, diz ele.

O estudo, desenvolvido a partir de um acervo de fitas complementares ao DNA, os cDNAS, propiciou a descoberta de vários clones que podem codificar outras toxinas – algumas, inclusive, desconhecidas ou com potencial ainda não dimensionado.

Em seu trabalho de caracterização da TSVII, Kênia Nunes descobriu o epitopo, a região imunodominante da toxina. O epitopo é a parte da toxina reconhecida pela célula do animal infectado e que desencadeia a produção de anticorpos. Segundo ela, essa descoberta permitirá a síntese do epitopo em laboratório. “Essas frações sintetizadas em laboratório, ou peptídeos sintéticos, como são conhecidas, não são tóxicas e podem contribuir para produção de soros terapêuticos de melhor qualidade”, explica a pesquisadora.

Segundo Kênia, a aplicação de terapias baseadas em venenos de animais peçonhentos enfrenta obstáculos técnicos e operacionais. Um dos problemas diz respeito à pequena quantidade de frações tóxicas, provenientes do veneno, disponibilizadas para estudos. “O veneno tem muitas enzimas, algumas tóxicas. Precisamos separá-lo e trabalhar apenas com uma fração muito pequena”, diz ela, explicando que este é um motivo que leva os cientistas a buscarem clones que codifiquem toxinas.

Outro obstáculo reside no próprio processo de produção do soro terapêutico. Ele é baseado na injeção do veneno não-fracionado em um animal. Seu organismo reage, ativando a produção do soro. O procedimento causa grande sofrimento e diminui a vida média do animal, já que, além das frações terapêuticas, ele também recebe substâncias nocivas.

Coordenador do Laboratório de Imunoquímica de Toxinas e orientador da dissertação de Kênia Nunes, o professor Carlos Chávez Ólortegui afirma que, apesar dos avanços na área, a qualidade dos soros terapêuticos precisa melhorar. Além do processo de produção do antiveneno, ele também vê problemas nas metodologias de diagnóstico e administração do soro. “A administração em humanos ainda não é adequada. Os soros não são totalmente purificados, além de nem sempre escolhidos corretamente. Também faltam métodos de diagnóstico”, aponta o cientista.

O laboratório desenvolveu um kit imunodiagnóstico que permite precisar a quantidade de toxina em circulação no organismo da vítima e identificar o volume exato de soro terapêutico a ser administrado. O diagnóstico, admite Kênia Nunes, carece de aperfeiçoamentos. “Ele precisa ser melhorado para especificar o tipo de toxina que circula no organismo”, explica.

O trabalho da pesquisadora integra linha de estudos que envolvem dois laboratórios do ICB, o de Imunoquímica de Toxinas, do departamento de Bioquímica e Imunologia, e o de Biologia Molecular, ligado ao departamento de Farmacologia. Os estudos são realizados em parceria com a Fundação Ezequiel Dias (Funed), centro produtor de soros em Minas Gerais. (Agência Brasil)