O senador João Capiberibe (PSB-AP) alertou, em pronunciamento no Senado Federal na sexta-feira passada, dia 26 de março, sobre o risco de conflitos internacionais que poderão ocorrer devido à escassez crescente de água. O ex-governador do Amapá informou que a ONU – Organização das Nações Unidas já identificou 300 áreas com potencial para conflitos hídricos.
Esta previsão de guerra da ONU é citada em todo planeta. O alerta, largamente difundido, de que a disputa pela água vai ser o principal motivo de guerras no Século 21 serve como argumento para conscientizar sobre as graves conseqüências da escassez crescente deste recurso natural vital para a vida ou simplesmente reforça a ideologia bélica que predomina no mundo?
O ecologista Arno Kayser, militante do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos, o primeiro a ser criado no Brasil, acha que esta história de guerra da água só serve para legitimar a indústria bélica. “É preciso ressaltar a importância da convivência harmônica como forma de solucionar os conflitos pelo uso da água”, afirma Kayser.
Um dos criadores da Lei de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul (No 10.350/94), Luiz Antônio Tim Grassi, funcionário aposentado da Corsan – Companhia Rio-grandense de Saneamento, concorda com Kayser e defende um movimento para mostrar que a água é motivo de paz, e não de guerra. Que pode, e deve, haver também convergência, e não apenas conflito.
A polêmica veio à tona durante a Terça Ecológica promovida em Caxias do Sul pelo NEJRS – Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul no dia 23 de março, em parceria com a ARI – Associação Riograndense de Imprensa e com apoio do Samae, o serviço de água e esgoto do município, e da UCS – Universidade de Caxias. Este foi o primeiro evento realizado pelo NEJRS fora de Porto Alegre.
O papel dos jornalistas
Este debate esconde uma questão mais ampla. Qual deve ser o papel da imprensa diante dos problemas ambientais do planeta? A função do jornalismo é descrever a realidade. Os conflitos em torno da água fazem parte deste contexto, então é natural falar em guerras hídricas, que na verdade sempre existiram ao longo da história da humanidade.
Mas a realidade é só conflito? Com certeza não. Também existem diversas ações políticas e instrumentos institucionais para solucionar os conflitos. Estes fatos não causam tanta sensação no jornalismo espetáculo, pois fazem parte da solução dos problemas. Mas deveriam estar na pauta, pelo menos nos espaços que se apresentam como serviços sérios de comunicação.
O caso do Rio Grande do Sul é exemplar. O Estado está com sérios problemas de caixa, com dificuldade de custear a própria máquina administrativa. Aprovada há dez anos, a Lei Estadual de Recursos Hídricos baseada no modelo francês prevê a cobrança pelo uso da água para aplicar em ações definidas previamente nas próprias bacias hidrográficas que geraram o recurso.
Este dinheiro poderia custear o funcionamento dos comitês de bacias hidrográficas, formado por representantes de todos os setores da sociedade envolvidos com o uso da água, e que hoje não tem dinheiro sequer pra fazer reuniões. Poderia levantar parte dos recursos para as obras de saneamento tão necessárias mas que ainda não saíram do papel.
Só que para implementar o Sistema Estadual de Recursos Hídricos é preciso criar as três Agências de Região Hidrográficas previstas em lei: do Guaíba, do Uruguai e Litorânea. São órgãos técnicos responsáveis pelos Planos de Bacia e pela própria cobrança pelo uso da água. A lei existe mas não é implementada. O setor chafurda na carência de dinheiro. E na imprensa, silêncio.
A implantação do sistema de recursos hídricos enfrenta uma enorme dificuldade cultural no Rio Grande do Sul. “Historicamente o estado está estruturado em feudos e a política das águas deve funcionar de forma sistêmica com uma gestão compartilhada”, avalia Luiz Grassi, coordenador da Câmara Técnica de Recursos Hídricos da ABES – Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental.
Os comitês de bacia hidrográfica são parlamentos da água. Democracia participativa pura. Os dois primeiros do Brasil surgiram no Rio Grande do Sul no final dos anos 80 nos rios Sinos e Gravataí, não por acaso os mais poluídos da Região Metropolitana de Porto Alegre. A dor ensina a gemer. São espaços de conflito, é verdade, mas de convergência e de civilização. E não de guerra.
Responsabilidade social
E a cobertura jornalística sobre a água é um espaço de guerra ou de paz? O que vende mais jornal, uma manchete anunciando uma guerra iminente ou outra falando de caminhos possíveis para resolver conflitos? A função do jornalismo é só vender jornal ou há também uma responsabilidade social esperada por parte da sociedade cada vez mais dependente do fluxo de informações?
A história de criação do primeiro comitê de bacia do Brasil, na poluída região do Vale do Sinos, mostra que a imprensa pode ter uma atuação mais responsável. “O engajamento dos veículos de comunicação do Grupo Sinos foi fundamental para mobilizar a sociedade e criar o Comitê Sinos”, recorda Arno Kayser, hoje funcionário concursado da Fepam, o órgão ambiental do Rio Grande do Sul.
“Eu gostaria que os jornalistas me perguntassem mais sobre os caminhos do que sobre os riscos”, reclama Luiz Antônio Tim Grassi. Para o ex-funcionário da Corsan, “ou todo mundo se ajuda ou a canoa vai afundar, até sem água”. Para ele, o decreto que transformou 2004 no Ano Estadual das Águas no Rio Grande do Sul é um sinal de que é possível mobilizar a sociedade gaúcha.
O tema deverá ser debatido em profundidade no planeta por pelo menos dez anos. No dia 2 de dezembro passado, a ONU instituiu a Década Internacional Água para a Vida, de 2005 a 2015. A iniciativa não é inédita. Já houve uma tentativa frustrada de mobilização mundial entre 1981 e 1990 com a Década Internacional da Água Potável e do Saneamento Ambiental.
O grande desafio é mostrar que a água é um recurso natural finito e cada vez mais escasso. A água não vai acabar, em função do ciclo hidrológico a quantidade existente no planeta será sempre a mesma. O que está mudando é o acesso, cada vez mais difícil em função da má gestão e do aumento da poluição. Ainda predomina a idéia de que ela é um recurso infinito.
Período profano
Tanto é assim que a humanidade defeca e urina na água que bebe. Nada mais irracional. Tudo vai para a água. Resíduos tóxicos de indústrias, fertilizantes agrícolas, agrotóxicos, garrafas, sofás velhos. Até um cofre de banco foi encontrado dia desses no arroio Dilúvio, símbolo da poluição hídrica em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul.
Não há vida sem água. Ecologicamente, ela ajuda a determinar os ecossistemas. Socialmente, ela exerce grande influência cultural. Por isso ela sempre foi considerada sagrada pelos povos. Deste ponto de vista, hoje vivemos um período profano. “A visão contemporânea enxerga a água apenas como um insumo produtivo, e por isso não há mais respeito com os rios”, analisa Arno Kayser.
Há duas maneiras de perceber a importância da água. Pela necessidade. É o caso dos arrozeiros gaúchos que sofrem com a atual estiagem. Ou através de uma noção idílica que reconhece a água como uma criatura da natureza que também merece o nosso respeito. Esta sacralização é o que faz a Romaria das Águas no Rio Grande do Sul. As duas visões não são excludentes. Há convergência.
Para aprofundar mais o debate sobre os caminhos possíveis, o Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul vai realizar outra Terça Ecológica sobre a água, desta vez em Porto Alegre (RS). O evento será no dia 6 de abril. Já confirmou presença o coordenador do Programa Água Doce da Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, Renato Ferreira. O local e a programação serão divulgados na EcoAgência (http://www.ecoagencia.com.br/) na próxima semana.
(Roberto Villar Belmonte / EcoAgência de Notícias)