Parece mentira, ou até piada, mas, em plena era digital, o controle da circulação de madeira na Amazônia ainda é todo feito à base de papel e caneta. Ferramentas tão arcaicas quanto seria um serrote de mão para derrubar as árvores da floresta. Mas essa realidade está prestes a mudar, segundo o Ibama. Já nos próximos meses, o instituto deve colocar em prática o projeto piloto de um novo sistema de controle, totalmente informatizado.
O modelo atual é todo construído em cima de um único documento, a Autorização para Transporte de Produto Florestal (ATPF), que deverá ser substituída por uma nova guia, chamada Documento de Origem Florestal (DOF). A mudança principal está na base tecnológica: enquanto a ATPF só existe no papel, o DOF será uma autorização de origem eletrônica. Os usuários poderão imprimir o documento diretamente da internet, e o Ibama passará a contar com um banco de dados atualizado em tempo real sobre toda a movimentação (legal) de madeira na Amazônia.
“A ATPF tem de sair. Precisamos de um sistema que seja transparente e impessoal, e que não dependa de um sujeito com um carimbo na mão”, diz o diretor de Florestas do Ibama, Antonio Carlos Hummel. A meta é fazer os primeiros testes com o DOF entre março e abril, possivelmente no Pará. A mudança já foi prometida outras vezes, mas o presidente do Ibama, Marcus Barros, garantiu em entrevista ao Estado no início do mês que as ATPFs seriam “sepultadas” ainda neste ano.
A fragilidade do sistema ficou flagrante em 2005, quando a Operação Curupira, da Polícia Federal, desbaratou uma quadrilha de madeireiros e funcionários do Ibama que fraudava ATPFs na Amazônia. Preenchidas a mão, as guias se tornam tão vulneráveis à corrupção quanto um recibo de táxi.
Como funciona
Diante da dificuldade do Ibama em fiscalizar o desmatamento no local onde ele ocorre, a ATPF busca detectar o infratores no estágio seguinte, que é o transporte da madeira. Por lei, todo carregamento com produtos florestais deve ser acompanhado de uma ATPF individual. As guias são emitidas pelo Ibama e preenchidas a mão pelos próprios usuários no momento do transporte.
Por exemplo: o dono de uma floresta na Amazônia tem um plano de manejo aprovado pelo Ibama para derrubar mil metros cúbicos de madeira. Ele então calcula o número de viagens que terá de fazer para transportar a madeira da floresta até a serraria e solicita ao Ibama o número correspondente de ATPFs, com origem e destino especificados. Depois, preenche a quantidade de madeira embarcada em cada trajeto.
Cada ATPF tem duas vias: a primeira vai com o motorista do caminhão e a segunda, em papel carbono, é devolvida ao Ibama. O instituto, então, deduz aquela quantidade de madeira do total que o madeireiro foi autorizado a desmatar pelo plano de manejo.
“O princípio é simples; funciona como uma conta corrente”, diz o coordenador de Políticas Públicas da WWF Brasil, Mauro Armelin. O empreendedor tem um saldo de metros cúbicos de madeira que está autorizado a cortar e as ATPFs são como um talão de cheques, que ele usa para prestar contas ao Ibama. Quem recebe a madeira (em princípio, a serraria) deveria recolher a primeira via da ATPF e devolvê-la ao Ibama com uma cópia da nota fiscal. No controle final, a primeira via deveria bater com a segunda, e tudo estaria certo. Mas essa é a exceção.
Mesmo quando o caminhão é parado pela fiscalização, a capacidade de detectar um carregamento ilegal é limitada. Apesar das ATPFs serem numeradas, impressas em papel moeda e cobertas com marcas de segurança, algumas falsificações podem ser convincentes. E sem um sistema eletrônico de referência, os fiscais de campo não têm como saber se a numeração da ATPF é falsa, se o que está escrito na autorização confere com o que foi declarado ao Ibama, ou mesmo se aquela ATPF não está sendo utilizada ilegalmente mais uma vez. Como as distâncias na Amazônia são muito grandes, as ATPFs têm validade de até 90 dias para transporte terrestre e 120 dias, para via fluvial. Uma das fraudes mais comuns, é a reutilização de ATPFs durante esse período. “Em vez de voltar para o Ibama, a ATPF volta para o madeireiro, que a reutiliza para acobertar o transporte de madeira ilegal”, explica Paulo Adário, diretor da campanha Amazônia do Greenpeace.
A lista de fraudes praticadas é imensa. Alguns truques mais simples incluem preencher as autorização a lápis, de maneira incompleta ou ilegível. “É um sistema muito frágil”, resume Adário.
Como deverá funcionar
O ciclo de ATPFs se repete da serraria até as madeireiras, e dessas até o varejo e o consumidor final. Cada vez que a madeira muda de mãos, uma nova autorização precisa ser emitida. A quantidade final de papel, como se pode imaginar, é gigantesca. O Ibama emite cerca de 1 milhão de ATPFs por ano, mas sem um sistema informatizado, não é possível determinar nem mesmo o número exato de autorizações.
A idéia do DOF é substituir toda essa papelada por um modelo de autorizações online. O sistema ainda dependerá de uma autorização impressa, para fins de fiscalização, mas o controle será feito de forma eletrônica. Em vez de comprar ATPFs do Ibama, a pessoa que tiver uma autorização para desmatar poderá declarar os carregamentos via internet e imprimirá um Documento de Origem Florestal para acompanhar o transporte. O débito da conta corrente do plano de manejo será feito no momento da emissão, em vez do controle manual feito com as ATPFs.
A idéia é que o DOF seja impresso com um código de barras, que permita aos fiscais de campo levantar o histórico da madeira a partir de um laptop ou computador de mão. O prazo de validade poderá ser bastante reduzido, já que o empreendedor não precisará mais ir até o Ibama para pegar as autorizações.
Fiscalização
Tudo isso, é claro, quando o infrator não ignora completamente a autoridade do Ibama e transporta a madeira sem documentação nenhuma. O Ibama mesmo reconhece que o número de caminhões parados pela fiscalização é mínimo. “Seja qual for o sistema de controle, precisamos melhorar a fiscalização”, diz Hummel.
A proposta do DOF, segundo ele, é focar a fiscalização na origem da madeira – no trajeto da floresta até as serrarias (por onde passa 80% da madeira na Amazônia), em vez de tentar controlar toda a cadeia produtiva, como ocorre com a ATPF. A idéia é que, se o Ibama conseguir garantir que toda madeira que entra e sai das serrarias seja legalizada, não haverá necessidade de fiscalizar o restante da indústria.
(Agência Estado)