Não bastasse o homem, com suas redes de pesca, barcos e jet skis, o peixe-boi marinho brasileiro agora está ameaçado também pelo próprio DNA. O primeiro estudo genético em larga escala das três espécies remanescentes de peixes-boi revela que o Trichechus manatus, já reduzido a cerca de 500 indivíduos no Brasil, está com sua diversidade seriamente comprometida.
Além da baixa variabilidade genética entre os sobreviventes, a pesquisa confirma uma velha suspeita de cruzamentos entre o peixe-boi marinho e o amazônico, o que resulta em filhotes híbridos e, muitas vezes, estéreis. “O sucesso reprodutivo da espécie fica ainda menor”, diz o pesquisador Fabrício Santos, da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. O fenômeno é o mesmo que ocorre com a mula, nascida do cruzamento de um cavalo e um burro: os machos são estéreis e as fêmeas, quase sempre, inférteis.
“É falado há muito tempo que deveria haver híbridos, por causa de animais marinhos que apareciam com manchas brancas ou sem unhas nas nadadeiras dianteiras (duas características do peixe-boi amazônico). Nosso trabalho é o primeiro a demonstrar isso geneticamente”, explica Santos. Ele é um dos principais autores do estudo internacional, publicado na revista Molecular Ecology.
A pesquisa analisou o DNA das três espécies remanescentes de peixe-boi: marinho (Trichechus manatus), amazônico (Trichechus inunguis) e africano (Trichechus senegalensis). Para comparação, foram incluídas ainda algumas amostras genéticas de dugongo (Dugong dugon), um parente mais primitivo do peixe-boi que habita os mares do sudoeste asiático.
Juntas, as quatro espécies compõem a ordem dos sirênios e todas são classificadas como vulneráveis na lista de ameaçadas da IUCN – União Mundial para a Natureza. No Brasil, especificamente, o peixe-boi marinho é considerado criticamente ameaçado.
Hoje protegido e conhecido por sua aparência dócil e simpática, o peixe-boi foi historicamente caçado como fonte de carne, gordura, óleo e couro. Os maiores podem chegar a 800 quilos. Na Amazônia, o mamífero ainda é caçado por populações ribeirinhas para alimentação. Já nas águas salgadas, as ameaças modernas são a ocupação desordenada do litoral, a poluição, a pesca e o tráfego intenso de embarcações.
“O peixe-boi marinho vive onde nós vivemos, com nossos jet-skis, nossas lanchas e nossas redes”, diz o oceanógrafo Régis Lima, chefe do CMA – Centro Mamíferos Aquáticos do Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, em Pernambuco, e coordenador nacional do Projeto Peixe-Boi, também do Ibama. “E agora temos uma pressão a mais: a genética.”
Diversidade – Feito ao longo de quatro anos, o estudo mostrou que há bastante diversidade genética entre as populações de peixe-boi marinho (por exemplo, entre os grupos da Flórida e do Brasil), mas pouca entre os indivíduos de cada população, o que pode resultar na extinção local da espécie. Sem muita variabilidade genética, as populações ficam mais vulneráveis a doenças e a fatores ambientais.
“A capacidade de adaptação fica reduzida”, explica Santos. “Se aumenta a temperatura, por exemplo, todos os indivíduos vão responder da mesma forma. Se a resposta for morrer, vão morrer todos.”
Além disso, há o problema do cruzamento com o peixe-boi amazônico, que ocorre quando as duas espécies se encontram no estuário do Rio Amazonas. Dos 324 exemplares de T. manatus e T. inunguis incluídos na pesquisa, 7 eram híbridos.
“É um risco muito grande, porque gera animais que podem não ser férteis”, observa Lima. “Como vamos lidar com isso, ainda não sabemos.” Uma das opções, segundo Santos, seria manter os animais híbridos em cativeiro, em vez de devolvê-los ao meio ambiente. Quanto à falta de diversidade genética na natureza, uma possível solução seria estimular a reprodução em cativeiro entre animais de populações diferentes e com genomas variados.
Os resultados mostraram que as populações mais diferenciadas de peixe-boi marinho são as da Guiana e do Brasil, comparadas aos demais grupos da Venezuela até os EUA. Os cientistas acreditam que milhares de anos atrás, quando o nível dos mares estava muito mais baixo, as ilhas caribenhas das Antilhas tenham funcionado como uma barreira física e genética, isolando os peixes-boi abaixo e acima dessa linha.
São dados que, segundo os cientistas, reforçam ainda mais a necessidade de uma ação emergencial para a preservação do peixe-boi marinho brasileiro. O estudo é assinado por 14 cientistas de 6 países. Ao todo, analisaram o DNA de 333 sirênios, incluindo animais em cativeiro, e amostras de tecido mantidas em coleções biológicas. (Hector Escobar/ Estadão Online)