O que era para ser motivo de comemoração –uma nova espécie de macaco no país que já é o lar da maior diversidade de primatas do mundo– deflagrou uma guerra entre pesquisadores do Nordeste. O pomo da discórdia é o chamado macaco-prego-galego (batizado, por um dos lados, de Cebus queirozi), cuja descoberta foi anunciada oficialmente nesta semana.
Enquanto um grupo diz que o macaco passou 500 anos despercebido da ciência, o outro argumenta que naturalistas dos séculos 17 e 18 pintaram e até batizaram o bicho –portanto, seria uma redescoberta. Um dos lados diz ter achado só três populações mínimas no litoral de Pernambuco, à beira da extinção; o outro fala em diversos bandos de vários Estados e sugere que a situação da espécie pode não ser tão difícil.
Contragolpe
Um dos golpes decisivos na briga deve vir no mês que vem, quando Marcelo Marcelino, chefe do Centro de Proteção de Primatas Brasileiros do Ibama em João Pessoa, e seus colegas publicarem a sua própria descrição da espécie (com um nome diferente de Cebus queirozi, que ele prefere não revelar por enquanto) no “Boletim do Museu Nacional”.
Marcelino defende a tese de que o bicho é o mesmo que cientistas como o alemão Georg Marcgrave (1610-1644), membro da comitiva de Maurício de Nassau durante a invasão holandesa do Nordeste, viram na região. Marcgrave trabalhou antes da criação do atual sistema de nomenclatura dos seres vivos, inventado pelo sueco Lineu no século 18. Mas um aluno de Lineu, Johann von Schreber (1739-1810), teria retratado o macaco, batizando-o de Simia flavia (símio loiro, em latim).
“A gente partiu do princípio de que seria impossível que alguém não tivesse visto esse bicho antes”, declarou Marcelino à Folha.
“São pinturas inexatas. Consultei-as várias vezes e nunca achei macaco igual”, rebate Antonio Rossano Mendes Pontes, especialista em ecologia e conservação de mamíferos da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).
Pontes e seus colegas são os autores da descrição do bicho como Cebus queirozi, publicada na revista científica “Zootaxa”. Ao longo do processo de descrição, alega Pontes, “eu mandei um e-mail para o senhor Marcelo Marcelino pedindo informações, e ele nunca me respondeu”. Ele diz ter a mensagem arquivada, mas não quis enviá-la à reportagem da Folha por não desejar discussões.
“É mentira. Ele nunca entrou em contato conosco”, afirma Marcelino. “O Rossano [Mendes Pontes] não é sistemata [especialista na classificação de espécies]. Deixou de citar os autores mais básicos sobre o assunto no Brasil. Então, como ele sabia que esses bichos eram diferentes? Simples. Não era mistério que estávamos trabalhando nele desde 2003. Ao ver o bicho pela primeira vez, saiu correndo para publicar o artigo, com o mínimo de informação”.
Por trás da acusação está o fato de que o artigo de Pontes apresenta apenas fotografias e dados gerais (altura, tamanho da cauda, pelagem etc.) de macacos vivos, enquanto a prática mais aceita é fazer uma análise detalhada do esqueleto, sacrificando um ou mais exemplares. “Não há problema com a descrição como foi feita. O código internacional admite que uma nova espécie seja descrita com base em figuras ou mesmo pegadas. Claro que isso não significa que um bom zoólogo faça isso”, ressalva Mario de Vivo, do Museu de Zoologia da USP.
Pontes se defende dizendo que seria antiético matar um bicho criticamente ameaçado. Marcelino diz ter matado só três macacos e que, na verdade, eles seriam achados no Rio Grande do Norte, em Alagoas, na Paraíba e em outros locais de Pernambuco além do estudado por Pontes.
Os adversários só parecem concordar num ponto: para evitar que eles fiquem brigando sobre o nada, é imperativo proteger e mapear a mata atlântica do Nordeste acima do rio São Francisco.
Seja lá qual for o número de populações, o animal está numa área em que restam poucos trechos intactos de mata. “Quando o Rossano viu a situação do macaco, achou que era preciso chamar a atenção para ele e por isso publicou o trabalho”, defende José Maria Cardoso da Silva, vice-presidente de ciência da ONG Conservação Internacional. A última palavra sobre o nome virá da comunidade científica: caso houver consenso de que o macaco e a pintura de Schreber casam, o nome dado no século 18 deve ganhar precedência, segundo as regras de nomenclatura zoológica.
(Fonte: Reinal Joseé Lopes / Folha de São Paulo – folha Online)