Em meados de novembro, a alfândega francesa apreendeu no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, um carregamento de oito fósseis de mesossauro – um réptil marinho de 250 milhões de anos – extraídos ilegalmente do Brasil. As peças estavam em um carregamento de bíblias e foram avaliadas em 100 mil (cerca de R$ 295 mil).
Os fósseis provavelmente saíram de uma pedreira na região de Itapetininga, no sudoeste paulista. Ali, trabalhadores rurais são contratados para passar o dia quebrando blocos de calcário em busca dos vestígios desses seres. O pagamento varia: alguns recebem menos de um salário mínimo por mês; outros ganham de R$ 30 a R$ 50 por “pedra” (fóssil) extraída.
Essa diferença de quase mil vezes nos ganhos nas duas pontas da cadeia é só um dos problemas do tráfico de fósseis. Num momento em que o Ministério Público e o DNPM – Departamento Nacional da Produção Mineral, órgão ligado ao Ministério das Minas e Energia, se unem para elaborar uma legislação mais rigorosa contra esse comércio, a extração clandestina e a exportação de restos de plantas e animais pré-históricos segue a toda no país.
O problema é mais conhecido na bacia do Araripe, no Ceará, uma das maiores e mais importantes jazidas fossilíferas do mundo. Mas também existe no Estado de São Paulo, onde, segundo a Folha verificou, algumas pedreiras deixam de comercializar o calcário – atividade para a qual obtiveram licença – para “minerar” os fósseis que nele se encontram.
Numa pedreira visitada pela reportagem na região de Itapetininga, por exemplo, há duas áreas de extração recém-abertas com essa finalidade – das quais saem fósseis de planta, peixe e, principalmente, os “bichos” (mesossauros adultos) e as “lagartixas” (mesossauros filhotes, ainda mais raros).
Ambas as áreas foram abertas para exploração por Antônio Márcio Gusmão, que arrenda pedreiras para extrair fósseis pelo menos desde a década de 1980. Ele é irmão da artesã Urânia Gusmão Corradini, apontada pelo DNPM como chefe do esquema de tráfico de fósseis no Estado de São Paulo.
A artesã também tem ligações com a comunidade científica – tem até um inseto batizado com seu nome, o Cratogenites corradinae. Diz ter vendido material a pelo menos dois pesquisadores de renome mundial: Diógenes Campos, chefe do Museu de Ciências da Terra do DNPM, e Alexander Kellner, do Museu Nacional. Ambos negam a compra.
Ela responde a pelo menos dois processos na Justiça Federal. É acusada de se apropriar ilegalmente de bens da União (os fósseis, como tudo que está no subsolo, são patrimônio federal) e negocia com o Ministério Público Federal um termo de ajustamento de conduta, pelo qual receberia uma pena alternativa em troca da suspensão do comércio.
Corradini disse à Folha que está “parada” e há mais de seis meses não vende fósseis. Diz que não tem contato com o irmão “há quatro meses” e que nunca recebeu fósseis dele para mandar ao exterior.
Em uma pedreira arrendada por Gusmão e visitada pela reportagem, mais de uma dezena de fósseis de mesossauro se encontravam já separados, em blocos, prontos para o transporte. Ferramentas como marretas, pás e talhadeiras estavam espalhadas pela área, a indicar trabalho recente.
Famílias – A pedreira é a mesma de onde saíram duas lajes de calcário contendo “famílias” de mesossauros do gênero Stereosternum. No dizer dos trabalhadores das pedreiras, “famílias” são placas nas quais vários répteis morreram juntos. São peças raríssimas –no Brasil inteiro só são conhecidas essas duas -, e ambas foram vendidas por Corradini no passado.
Um dos trabalhadores contratados por Gusmão afirma ter extraído, em um mês de trabalho, “seis bichos e dez lagartixas”. Em sua casa, ele mantém uma espécie de caderneta de poupança petrificada: três fósseis espetaculares de mesossauro, que está deixando “para vender depois”. Um deles, diz, gostaria de trocar por uma antena parabólica. Valor: R$ 400.
Se vendesse seus fósseis na internet, provavelmente ganharia mais dinheiro. Fósseis de mesossauro da formação Irati, como se chama esse conjunto de rochas, podem ser achados à venda no eBay e em sites especializados em fósseis (esse comércio é legalizado em várias partes do mundo, como nos EUA) por valores que vão de US$ 300 (R$ 600) a US$ 2.000 (R$ 4.000).
Prejuízo – O tráfico de fósseis traz prejuízos à comunidade científica nacional, que muitas vezes precisa buscar espécimes raros da fauna pré-histórica brasileira para estudar em museus e coleções privadas no exterior. Ou, pior, pagar o mico de ver cientistas estrangeiros descrevendo com prioridade fósseis brasileiros aos quais os próprios brasileiros não tiveram acesso, porque não puderam pagar.
“Não sei se essa nova legislação será eficaz contra esse comércio. É um problema que existia, existe e continuará existindo”, diz o paleontólogo Reinaldo José Bertini, da Unesp de Rio Claro.
Fósseis comuns como os mesossauros, no entanto, já não representam novidade nenhuma para a ciência. Mesmo assim, diz Bertini, seu comércio precisa seguir proibido. “Não é porque existem às pencas que devem sair do país. Isso é um acervo brasileiro, que nem todas as universidades têm.” (Claudio Angelo/ Folha Online)