Pesquisa relata nova função para o RNA

E não é que há tesouros também na lixeira do RNA? Um estudo publicado nesta semana na versão on-line da revista “Nature” mostra a descoberta de uma nova função para os chamados RNAs não-codificantes, os primos do DNA que não participam da síntese de proteínas e eram considerados por alguns “lixo” genético.

“Nós conseguimos descobrir uma nova função protagonizada por esses RNAs não-codificantes”, disse à Folha o pesquisador Alexandre Akoulitchev, principal autor do trabalho e cientista na Universidade de Oxford, Inglaterra.

O mecanismo descrito agora é uma espécie de bloqueio genético que ocorre ainda dentro do núcleo celular. O RNA não-codificante é quem se liga à fita complementar de DNA.

O problema é que essa ligação, no caso do estudo, ocorreu na região onde deveria estar uma proteína que daria seqüência ao fluxo normal da informação genética na célula.

Resultado: aquele gene específico não foi lido. O bloqueio, portanto, ocorre no nível de transcrição, antes da fase onde já se sabia que atuava o RNA não-codificante.

“Está claro que o RNA não-codificante do gene DHFR está envolvido no processo de regulação dele, determinando o estado de ligado ou desligado”, explica a pesquisadora portuguesa Ana Serra Barros, uma das co-autoras do trabalho, que também está na Inglaterra.

O DHFR produz uma enzima que controla a produção de timina, substância vital para as células de divisão rápida, como as que existem nos tumores.
“A inibição do gene DHFR pode prevenir, por exemplo, o crescimento de células como as que existem no câncer de próstata”, avalia Barros.

Segundo Akoulitchev, no longo prazo, existem boas chances de que novas drogas sejam criadas com base nos mecanismos usados pelos RNAs não-codificantes. “Isso, para controlar a expressão de genes específicos”, disse.

Beleza biológica – Para o pesquisador brasileiro Marcelo Nóbrega, da Universidade de Chicago, é bem provável que esse mecanismo revelado agora esteja presente em outros genes. “Essa forma de regulação, para mim, não seria uma surpresa”, comenta.

Esses RNAs não-codificadores, segundo Nóbrega, a cada dia que passa, ganham mais importância. “Esse estudo fortalece a noção de que eles têm funções importantes. Será intrigante descobrir quais são elas.”

No contexto do progresso científico, o ganho de status do RNA não-codificante tem vários desdobramentos. O primeiro deles é mostrar que o conhecimento sobre biologia celular adquirido no colégio está praticamente ultrapassado.

“O fluxo da informação genética tradicional (DNA-RNA-proteína) vem sendo revisitado. Eis agora um exemplo que mais parece com DNA-RNA-RNA/DNA e sem proteína.”

Para Nóbrega, também, essas novas funções do RNA dão conta de que o Projeto Genoma Humano, em vez de ser um passo para o fim, é o primeiro ponto de um caminho quase infinito. “Pensávamos que, depois do genoma, seria possível destrinchar as redes genéticas. O que se descobre é que há um número sem fim de mecanismos de regulação e codificação.”

Se os pesquisadores estão longe de atingir os objetivos do Projeto Genoma, ainda não existe espaço para a decepção. “A beleza de um mecanismo novo é mais importante do que nos vermos cada dia menos aptos a explicar processos biológicos complexos”, diz Nóbrega. (Eduardo Geraque/ Folha Online)