Terra vai dar o troco por aquecimento, diz cientista

Em dado momento de seu livro “A Vingança de Gaia”, o cientista britânico James Lovelock cita o presidente americano Franklin Delano Roosevelt, que liderou seu país de forma vitoriosa durante os anos sombrios da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial. Ao assumir a presidência, Roosevelt declarou: “Não devemos ter medo de nada, exceto do próprio medo”. A ironia da citação torna-se gritante ao longo das páginas do livro, que é um alerta vigoroso e comovente sobre os perigos do aquecimento global: às vezes parece que Lovelock não seguiu o conselho de Roosevelt.

Explica-se: “A Vingança de Gaia” parte do pressuposto de que a humanidade já pode ter danificado de forma irreversível o sistema intrincado que faz do planeta um lugar acolhedor para as formas de vida. É verdade que pouca gente está mais qualificado do que Lovelock para fazer esse diagnóstico de “médico planetário”. Ele é um dos pioneiros nos estudos que tentam enxergar a Terra como um sistema único, interligado de forma complexa e auto-reguladora.

As pesquisas de Lovelock sobre a “fisiologia” do planeta abriram caminho para a descoberta de problemas como o buraco na camada de ozônio e o aquecimento global causado pela emissão de combustíveis fósseis. Ainda nos anos 1960, ao trabalhar com a Nasa, ele intuiu (corretamente, como logo comprovariam missões espaciais não-tripuladas) que planetas como o Marte e Vênus estavam essencialmente mortos, dado o estado de equilíbrio químico de suas atmosferas.

O britânico, porém, foi além. Lovelock começou a ver o equilíbrio dinâmico do planeta como um esforço (inconsciente, é claro, mas direcionado e poderoso) da Terra inteira para conservar indefinidamente as condições favoráveis aos seres vivos. O planeta, em outras palavras, é um superorganismo – que ganhou o nome grego de Gaia, a Mãe Terra da mitologia pagã.

O temor de Lovelock é que a humanidade tenha causado à Mãe Terra uma febre tão incômoda, ao lançar na atmosfera os gases da queima de combustíveis fósseis, que ela se veja forçada a saltar para um novo estado de equilíbrio, bem mais quente que o atual.

Esse estado aquecido, sem precedentes nos últimos 55 milhões de anos, não seria um mero incômodo, do tipo que exige ampliar o número de aparelhos de ar-condicionado per capita. Pelo contrário, a nova Gaia será qualitativamente diversa da atual, fortemente empobrecida em termos de quantidade e diversidade de vida, de tal forma que a própria civilização humana estaria ameaçada. Sobreviveríamos como espécie, é verdade – mas viraríamos um punhado de refugiados, empobrecidos e quase selvagens. Numa descrição memorável, o cientista vê uma família migrando pelo deserto rumo a um oásis nas atuais regiões polares, arrastando seu camelo pelas rédeas.

Boa ciência, má futurologia?

Soa absurdo, de fato, mas seria injusto reduzir o livro a esse argumento. Lovelock traça uma explicação magistral de sua teoria de Gaia e expõe os resultados mais recentes da ciência climática com grande clareza. E, do ponto de vista científico, parece difícil discordar da projeção da Terra quente como um lugar mais pobre de vida.

A explicação é simples, e vem do mar. Cobrindo a imensa maioria da superfície do nosso planeta, o oceano, nas regiões tropicais, é um enorme deserto, menos nos lugares perto dos continentes onde substâncias nutritivas vindas da terra firme o fertilizam. Mas, paradoxo dos paradoxos, em águas com temperatura igual ou inferior a cerca de 10 graus Celsius, a vida explode.

O motivo é que, nos mares quentes, forma-se uma camada superficial estável de água morna, que não se mistura com as águas frias e fundas abaixo dela. Acontece que essas águas das profundezas são ricas em nutrientes: sem eles, as algas de uma só célula que capturam a luz do Sol e produzem comida para todos os outros seres marinhos não sobrevivem. Porém, em mares frios, toda a coluna d’água permanece bem misturada o tempo todo, de maneira que nunca falta comida. Assim, se comparada área por área com a atual, a Terra superaquecida é muito mais um deserto do que uma floresta tropical.

Lovelock também acerta em cheio ao dar um tranco na complacência que parece ter tomado conta da civilização ocidental. Ele deixa claro quão vã é a idéia de que será possível vencer o desafio do aquecimento global sem alterar um milímetro dos atuais padrões de vida e consumo, dirigindo a mesma quantidade absurda de carros ou usando a mesma quantidade obscena de terras para cultivo e criação intensivos, enquanto as florestas tropicais, essenciais para o sistema climático, vão sendo derrubadas.

Mas Lovelock também tem suas bordoadas preparadas para o movimento ambientalista, cujo medo paranóico da energia nuclear e dos “produtos químicos” pode, na verdade, ter agravado a crise do clima. A tecnologia nuclear, como mostra o cientista de forma persuasiva, é essencialmente segura e causa dano quase nulo ao sistema climático. Usar a energia do vento, das marés e do Sol pode até ser o futuro, mas não podemos nos dar ao luxo de esperar que essas tecnologias amadureçam para agir, alerta ele.

A nota de urgência na voz de Lovelock é justificada. Mas o livro perde sua estatura moral normalmente alta quando o autor deixa de lado o rigor científico e mostra como muito provável a iminência de um desastre climático repentino e irreversível. Por enquanto, podemos dizer sem medo de errar que a mudança será perturbadora, empobrecedora e altamente desagradável – mas não catastrófica. Ao carregar nas tintas e usar o medo como arma de conscientização, Lovelock corre o risco de atrair um efeito colateral dos mais indesejáveis: tirar do público a sensibilidade diante de um problema muito real quando os desastres não vierem. É uma corda bamba na qual todos nós teremos de aprender a caminhar.
(Fonte: Reinaldo José Lopes / Portal G1)