Grupo amazônico de roedores subterrâneos vira praga com desmate

Thales Ochotorena de Freitas, autointitulado “tucólogo” (especialista em tuco-tucos, roedores subterrâneos), aponta para o pilar da sala, de três metros de altura. “Em Mato Grosso, eles conseguem derrubar seringueiras jovens mais ou menos desse tamanho, simplesmente roendo a raiz”, diz Freitas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

É claro que esses bichos, versão tupiniquim das marmotas do hemisfério Norte, não viraram praga dos seringais – e das plantações de cacau, café e mandioca – só por espírito de porco. Originalmente, os tuco-tucos mato-grossenses eram habitantes da floresta fechada, mas o avanço do desmatamento anda levando os bichos a colonizar roças recém-criadas.

A situação desses animais na Amazônia é ainda mais inusitada do que essa descrição sugere. Até pouco tempo atrás, ninguém pensaria em procurar tuco-tucos no meio da mata fechada, simplesmente porque todo mundo achava que esses roedores, membros do gênero Ctenomys, gostassem mesmo era de ambientes descampados, de preferência com muita grama, seu principal alimento.

Desse ponto de vista, a invasão atual das plantações é só o segundo episódio da invasão anterior – a da mata. “A gente ainda está tentando entender o que aconteceu”, diz Freitas. “Uma ideia é que as flutuações climáticas (do fim da Era do Gelo, há cerca de 10 mil anos) fizeram com que as áreas abertas onde os tuco-tucos vivem avançassem para a Amazônia. Quando a floresta voltou, a vegetação aberta recuou e os bichos ficaram”, diz o biólogo.

Verificar se esse cenário corresponde à história evolutiva dos bichos exige resolver um enigma que surgiu na época heroica das expedições do marechal Cândido Rondon, no começo do século 20.

Rondon e companhia percorreram o território dos tuco-tucos e, por sorte, a equipe do marechal incluía um zoólogo do Museu Nacional, Alípio de Miranda Ribeiro. Em 1914, em publicação da “Commissão de Linhas Telegraphicas Estrategicas de Matto-Grosso ao Amazonas”, Ribeiro disse ter identificado três espécies de tuco-tucos em Mato Grosso, a C. nattereri (já descrita por outro pesquisador no século 19), a C. bicolor e a C. rondoni (ambas batizadas por Ribeiro, que resolveu homenagear Rondon).

Isso deveria ter encerrado o assunto, mas não encerrou. Para começar, o exemplar de referência de uma das espécies desapareceu, e os correspondentes às outras duas não estão nas melhores condições de conservação. Ou seja, é muito difícil confirmar a identidade dos bichos comparando os espécimes de hoje com os de 1914.

Mais importante ainda, e para complicar de vez a situação, Freitas e companhia acharam pelo menos quatro formas “novas” de tuco-tuco (conhecido localmente como rato-paca ou rato-cururu) em Mato Grosso, nos municípios de Pontes e Lacerda, Cáceres, Nova Olímpia e Nova Ubiratã. “Dá para reconhecer de forma relativamente fácil, apenas pelo padrão de cores da pelagem, que os bichos são diferentes entre si. A questão é saber o quão diferentes eles são”, afirma o pesquisador.

Análises preliminares de mtDNA, ou DNA mitocondrial (material genético presente nas mitocôndrias, as centrais energéticas das células), sugerem que os bichos de Mato Grosso formam um grupo à parte, que descende de um ancestral comum e tem parentesco mais ou menos distante com roedores bolivianos (esses sim tuco-tucos “clássicos”, nativos de áreas mais abertas).

Artistas da fuga – Outro elemento que, por enquanto, ajuda a manter o mistério sobre os animais é a dificuldade de botar as mãos neles, explica Freitas. Ao contrário dos tuco-tucos do Rio Grande do Sul, que o biólogo e seus colegas capturam sem grandes dores de cabeça, os mato-grossenses quase parecem se divertir às custas dos pesquisadores.

“A gente costuma usar uma versão menor daquelas armadilhas de urso nas tocas”, diz Freitas, referindo-se à arapuca conhecida de quem assiste a desenhos animados, parecida com uma bocarra dentada. “Nós usamos uma cobertura de borracha para não machucar o bicho nem deixá-lo sofrendo enquanto a armadilha não é recuperada. Mas os de Mato Grosso parecem conseguir escapar delas – muitas se fecham sem pegar nenhum bicho.”

Freitas diz que ainda é difícil dizer se as espécies identificadas pelo companheiro do marechal Rondon vão ser ressuscitadas ou se os bichos achados agora ganharão nomes novos. De qualquer maneira, as pesquisas são uma nova prova do potencial evolutivo quase frenético dos tuco-tucos.

De um ancestral que viveu há apenas 3 milhões de anos, os bichos se diversificaram em cerca de 60 espécies, com enormes diferenças genéticas, colonizando da Patagônia ao sul do Pará. Nada mal para quem passa a vida debaixo da terra. (Fonte: Reinaldo José Lopes/ Folha Online)