“Essa era a típica lavoura de soja no Cerrado nos anos 70”, conta o pesquisador da Embrapa. E o pior: “Pode ser a típica lavoura do futuro também, se não fizermos o melhoramento genético agora.”
O problema é o calor. Abud, assim como tantos outros cientistas ligados ao setor agrícola, está preocupado com o aquecimento global. As previsões indicam que as mudanças climáticas ocasionadas pelo aumento da temperatura do planeta vão alterar drasticamente as condições de cultivo em várias regiões do País. A perda de produtividade poderá ser dramática em algumas áreas, com consequências graves para a segurança alimentar e a sustentabilidade – ambiental, social e econômica – do agronegócio brasileiro, segundo um estudo de especialistas da Embrapa e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A agricultura é a atividade que mais depende do clima e, portanto, a mais vulnerável às mudanças climáticas. O agricultor pode adubar o solo, construir açudes, selecionar sementes, mas não pode controlar a atmosfera. Cada planta tem seu tempo certo de plantio e colheita. Se a chuva que costuma chegar na primeira semana do mês começa a chegar na última, o planejamento de uma safra inteira pode ir por água abaixo.
Mais prejudicadas – A perda somada de áreas propícias para algodão, arroz, café, feijão, girassol, milho e soja poderá passar de 15% das áreas atuais já em 2050, se nada for feito para adaptar as lavouras aos efeitos do aquecimento global. A cultura que deverá ser mais prejudicada é a mais importante da balança comercial brasileira: a soja. Mesmo com todo o melhoramento genético das últimas décadas, a oleaginosa sino-brasileira poderá perder mais de 40% das áreas propícias para plantio em 2070.
As únicas beneficiadas pela mudança climática, segundo o estudo, serão a mandioca e a cana-de-açúcar. “Boas notícias para a produção de etanol, más notícias para a produção de alimentos”, resume o pesquisador Eduardo Assad, chefe da Embrapa Informática Agropecuária, em Campinas.
No Tocantins, Abud e seus colegas da Embrapa Cerrados procuram linhagens de soja que sejam naturalmente tolerantes a altas temperaturas para serem usadas no desenvolvimento de novas cultivares. “Não podemos esperar o problema chegar, temos de pesquisar agora”, diz Abud, lembrando que uma nova variedade pode levar dez anos para ficar pronta.
Formoso do Araguaia é o laboratório perfeito para o trabalho. Localizado bem no meio do Cerrado, a temperatura no município chega aos 40 graus no meio do ano. Um sistema de irrigação subterrânea permite que os experimentos sejam feitos até mesmo nos períodos mais secos. “Aqui é a prova de fogo”, anuncia o pesquisador Plínio Souza, da Embrapa Cerrados. “A soja que for bem aqui vai bem em qualquer lugar.”
Em uma visita de trabalho à região, acompanhada pelo Estado, ele caminha por entre as folhagens de um grande “jardim” experimental da Embrapa. A área de 7 hectares, instalada ao lado de uma lavoura comercial, está dividida em centenas de parcelas de 40 metros quadrados, cada uma plantada com uma variedade diferente de soja. Algumas diferenças são óbvias até para um leigo: parcelas com plantas verdes e vistosas versus plantas amarelas e ressecadas. Em outras, só o especialista vê: o grau de amadurecimento das vagens, o teor de umidade dos grãos, a capacidade da planta de adaptar o ângulo de suas folhas para captar a maior quantidade de luz.
Souza está atento a tudo. Ele passeia pelas parcelas, inspeciona as plantas com as mãos, mastiga algumas sementes e dá o veredicto: “Essa é boa para Brasília”, “essa é boa para o Maranhão”, “essa aqui já era”.
Próxima ao experimento está a plantação de soja miúda indicada por Abud. Trata-se de uma variedade “gaúcha”, que foi plantada ali apenas para multiplicação de sementes, aproveitando o sistema de irrigação local. “Você planta essa soja no Rio Grande do Sul e ela fica enorme”, diz o pesquisador – um exemplo perfeito da necessidade de compatibilidade genética entre a planta e o ambiente.
O problema é que o calor altera a biologia da planta e acelera seu metabolismo, fazendo com que ela floresça mais cedo ou aborte suas sementes. Consequentemente, a soja cresce menos e produz menos. Além disso, há o estresse hídrico. Assim como os seres humanos, as plantas e o solo transpiram mais – perdem mais água – quando a temperatura aumenta. A reação do vegetal, também nesse caso, é acelerar seu crescimento e florescer mais cedo.
Milhares de quilômetros ao sul de Formoso, na sede da Embrapa Soja em Londrina (PR), quem está atento a isso é o biólogo Alexandre Nepomuceno. Em parceria com cientistas japoneses, ele desenvolve desde 2004 uma variedade de soja transgênica tolerante à seca. Para isso, introduziu no DNA da soja um gene extra “de alerta”, que permite à planta detectar e reagir à falta de água de forma muito mais rápida e eficiente – por exemplo, fechando os estômatos de suas folhas para reduzir a transpiração.
“Nenhuma planta é totalmente resistente à seca. O que queremos é amenizar as perdas, dando mais tempo para a soja se defender”, explica Nepomuceno. Os primeiros testes de campo foram autorizados pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e deverão ser realizados ainda neste ano. Experimentos feitos em ambiente controlado mostram que a soja com o gene é até 10% mais tolerante à seca do que a convencional.
Recursos escassos – Os resultados até agora são bons, mas são poucos. Segundo os cientistas, a quantidade de recursos disponíveis para pesquisas de adaptação às mudanças climáticas ainda está longe do ideal. “Tem muita coisa sendo feita, mas deveria ter muito mais. Poderíamos estar mais adiantados”, diz o agrônomo Hilton Pinto, do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Unicamp.
“Não estamos fazendo terrorismo. As soluções existem, mas precisamos agir rápido”, completa Assad. Segundo ele, a Embrapa investe atualmente R$ 40 milhões em pesquisas sobre mudanças climáticas – incluindo R$ 30 milhões para o melhoramento genético de plantas. “É um bom começo, considerando que três anos atrás não tinha nada.”
As agências governamentais de fomento também demoraram para prestar atenção no tema. Tanto que o estudo sobre o impacto do aquecimento global na agricultura, que Hilton coordenou com Assad, foi 100% financiado e encomendado pela embaixada britânica. Só no ano passado a Fapesp e o CNPq lançaram programas de pesquisa importantes nessa área. “Acho que ainda faltava as pessoas se convencerem de que isso é um problema de verdade”, avalia Hilton. (Fonte: Herton Escobar/ Estadão Online)