A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que anualmente 5 milhões de pessoas sofram algum tipo de acidente envolvendo serpentes. A metade dos casos resulta em diversos graus de envenenamento, ocasionando cerca de 120 mil mortes e 250 mil indivíduos que carregarão sequelas.
Esses números levaram a OMS a enquadrar o acidente com serpentes na lista de doenças tropicais negligenciadas (DTNs), que reúne enfermidades erradicadas ou praticamente erradicadas nos países desenvolvidos, mas que persistem naqueles em desenvolvimento.
“Como as comunidades atingidas têm pouca voz política, essas doenças ganham baixo impacto nas agendas de saúde mundiais”, disse Denise V. Tambourgi, diretora do Laboratório de Imunoquímica do Instituto Butantan de São Paulo (SP).
O assunto foi abordado em uma conferência dada pela cientista durante a 62ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada no fim de julho, em Natal.
Cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo são vítimas de doenças tropicais negligenciadas, um grupo que engloba enfermidades como dengue, hanseníase, doença de Chagas, leishmaniose e esquistossomose.
Os acidentes com serpentes chegam a ser mais numerosos do que casos de doenças como a dengue, que tem atingido 500 mil pessoas por ano e provocado a morte de 19 mil, apontou Denise, que conta com um Auxílio à Pesquisa – Regular da FAPESP para estudar os mecanismos moleculares de ação do veneno das lagartas Premolis semirufa.
De acordo com a cientista, as ocorrências com serpentes devem ser ainda mais numerosas do que o apontado pela OMS, uma vez que o registro desses acidentes não é feito em todos os países. A situação se torna ainda mais grave se forem considerados acidentes com outros animais peçonhentos.
“Acidentes com aranhas são comuns e os registros de picadas de escorpiões têm crescido nos últimos anos”, disse. Segundo ela, a lista da OMS deveriam abranger acidentes com todos os animais peçonhentos no grupo de doenças tropicais negligenciadas.
A importância do assunto tem levado o Instituto Butantan a investir no aprimoramento do antiveneno de outros animais além das serpentes, como é o caso da aranha marrom.
Mesmo sem ter o número exato de acidentes, pode se concluir que a maioria ocorre nos países mais pobres. Segundo Denise, há uma relação direta entre a quantidade de ocorrências com animais peçonhentos e a pobreza. Há estudos mostrando que o número de mortes desse tipo é maior nos países com menor índice de desenvolvimento humano (IDH).
“O problema é mais preocupante na África, onde há uma crise na produção e na distribuição de antivenenos”, disse. No continente africano não há laboratórios produtores de antiveneno, o que aumenta a dificuldade de acesso a esse tipo de medicamento.
Para enfrentar a questão foi criada na Austrália a Iniciativa Global para Acidentes com Serpentes, que estabeleceu uma série de metas que objetivam auxiliar as nações mais carentes a lidar com o problema.
Fazem parte da lista o levantamento de informações confiáveis sobre esses acidentes, a melhora na produção de antivenenos, o auxílio aos países pobres no desenvolvimento de soros específicos, a produção regional desses soros a preços acessíveis e estudos sobre a eficácia dos antivenenos.
“Esses ensaios clínicos são mais complicados do que os testes de outros tipos de medicamentos, pois você não pode administrar placebo em um suspeito de picada de cobra”, explicou Denise.
A Iniciativa Global almeja um sistema eficiente de distribuição dos soros observando-se a ocorrência das espécies de serpentes de cada região, além da criação de um programa de educação preventiva aos acidentes e de outro para apoiar as vítimas com sequelas.
Outra meta seria a criação de um fórum permanente de agentes de saúde com o objetivo de monitorar os casos e deliberar ações para combater esses acidentes.
No Brasil, apenas em 2006 tornou-se obrigatória a notificação dos acidentes com animais peçonhentos. Em 2008, o país apresentou mais de 100 mil ocorrências do tipo, sendo 27 mil com serpentes e 20 mil envolvendo aranhas.
Mais soros polivalentes – Denise afirma ser fundamental a distribuição e o acesso aos antivenenos para a redução dos casos. O Instituto Butantan tem trabalhado para aprimorar os antivenenos que produz, de modo a ampliar sua ação para um número maior de espécies.
Das mais de 20 espécies existentes do grupo Bothrops, da jararaca, no Brasil, apenas cinco participam da mistura de imunização utilizada para a produção do soro polivalente no país. Devido às variações entre as espécies, não há garantias de que o soro terá uma neutralização dos venenos de todas.
Para atender a todo o Brasil, os pesquisadores do Butantan têm de lidar com uma tarefa árdua: conseguir um conjunto de venenos que neutralize ao máximo a ação tóxica de todos eles.
“Isso não é fácil, pois os venenos são misturas químicas muito complexas e que possuem uma ampla variação”, disse Denise. Para enfrentar esse desafio, os pesquisadores do Butantan desenvolveram métodos in vitro para analisar a ação dos soros terapêuticos.
É um equilíbrio difícil. Temos de desenvolver antivenenos que apresentem o mínimo de toxicidade, com uma máxima capacidade neutralizante para os venenos das diferentes espécies de serpentes que ocorrem em todo o território nacional”, disse. (Fonte: Fabio Reynol/ Agência Fapesp)