Nas universidades, houve uma época em que os animais pertenciam à esfera da ciência. Ratos corriam por labirintos nos laboratórios de Psicologia; vacas mugiam nos celeiros da Veterinária; macacos se agitavam nas gaiolas dos departamentos de Neurociência. Além disso, nas mesas de dissecação dos alunos de graduação, rãs preservadas se mantinham em um silêncio sepulcral.
Do outro lado do campus, nas salas de reuniões e salas de aula de Artes Liberais e Ciências Sociais, onde nunca se serve ração de macaco e todos os labirintos são feitos de palavras, a atenção dos estudiosos estava firmemente fixada nos seres humanos.
Isso mudou.
Neste semestre, os calouros de Harvard poderão cursar uma disciplina intitulada “Humanos, animais e ciborgues”. No ano passado, Dartmouth ofereceu o curso “Animais e mulheres na literatura ocidental: potrancas, vacas e víboras”. A Universidade de Nova York disponibiliza a disciplina “Animais, pessoas e seres intermediários”.
Os cursos são parte do campo crescente, mas ainda indefinido, dos Estudos Animais. Até agora, de acordo com Marc Bekoff, professor emérito de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade do Colorado, a área inclui “qualquer coisa que tenha a ver com a maneira como seres humanos e animais interagem”. Arte, Literatura, Sociologia, Antropologia, Cinema, Filosofia, Teatro, Religião — há animais em todas elas.
O campo, em parte, baseia-se em uma longa história de investigação científica que tem obscurecido a distinção outrora nítida entre seres humanos e outros animais. Já se mostrou que outras espécies têm aspectos linguísticos, utilizam ferramentas e possuem até mesmo fundamentos morais. Ele também deriva de uma área chamada de Estudos Culturais, a partir da qual a academia, ao longo dos anos, voltou sua atenção para seres humanos ignorados e marginalizados.
Agora, alguns estudiosos perguntam: por que parar por aí? Por que reverenciar a fronteira incerta que separa uma espécie de todas as outras? São tempos que pedem por uma direção de palco shakespeariana: abrir mão das humanidades sendo perseguido por um urso? Ainda não, embora alguns estudiosos tenham sugerido que chegou a hora de avançarmos em direção às pós-humanidades.
O Instituto dos Animais e da Sociedade, que tem apenas seis anos de idade, lista mais de 100 cursos em faculdades e universidades dos EUA que pertencem à ampla bandeira dos Estudos Animais. Enquanto institutos, séries de livros e conferências proliferam, surgem programas acadêmicos formais.
A Universidade Wesleyan, juntamente com o Instituto dos Animais e da Sociedade, iniciou um programa de bolsas de verão neste ano. Um programa da Universidade Estadual de Michigan permite que alunos de Mestrado e Doutorado de diferentes áreas concentrem suas pesquisas no campo dos Estudos Animais. Pelo menos duas instituições oferecem cursos de graduação na área. E no semestre passado, a Universidade de Nova York deu início a um programa de Estudos Animais, permitindo que seus alunos cursem disciplinas da área no começo da graduação.
Dale Jamieson, diretor desse programa, disse que as atividades ligadas aos Estudos Animais tinham sido “um tanto rudimentares” até agora, mas que espera que a Universidade de Nova York ajude a “tornar o campo mais coeso e rigoroso academicamente”.
Obviamente, os estudiosos nunca ignoraram os animais. Pensadores e escritores de todas as épocas se confrontaram com o que separa os humanos dos outros animais e com o modo como devemos tratar nossos primos distantes e não tão distantes. Essa atual explosão de interesse pelo assunto é nova, no entanto, e os estudiosos reconhecem que há várias razões para o crescimento do campo.
Kari Weil, professora de Filosofia da Universidade Wesleyan cujo livro “Thinking Animals: Why Animal Studies Now?” (“Pensar os animais: o porquê dos Estudos Animais hoje”, em tradução livre) será publicado neste primeiro semestre, disse que as ciências comportamental e ambiental pavimentaram o caminho para dar aos humanos “a noção de que somos uma espécie entre outras espécies” — que nós, como outros animais, estamos “sujeitos às forças da natureza”.
Pense no efeito que a pesquisadora Jane Goodall provocou quando mostrou ao mundo, pela primeira vez, o lado social e emocional dos chimpanzés, o que fez com que se tornasse quase impossível mantê-los do outro lado do divisor entre homens e animais. Ou assista ao popular vídeo do YouTube em que uma espécie de corvo da Nova Caledônia entorta um arame para fazer dele uma ferramenta com a qual pesca comida de um recipiente, e se pergunte que idade uma criança teria que ter para ser capaz de resolver esse problema.
A influência mais direta pode ter vindo da Filosofia. O livro “Animal Liberation” (“Libertação Animal”, 1975), de Peter Singer, foi um marco na discussão contra matar, comer e fazer experimentos científicos com animais. Ele questionou como os humanos conseguiam deixar os animais à parte de uma apreciação moral, como eles conseguiam justificar causar dor aos animais.
Lori Gruen, chefe do departamento de Filosofia da Universidade Wesleyan e coordenadora do programa de bolsas de verão em Estudos Animais da instituição, disse que uma das principais questões da Filosofia é “a quem devemos direcionar nosso interesse moral?”. Trinta anos atrás, os animais estavam à margem das discussões filosóficas sobre ética. “Agora, a questão animal está no centro das discussões sobre ética.”
E é de interesse público.
Jane Desmond, da Universidade de Illinois, antropóloga cultural que organizou uma série de palestras sobre animais na instituição, diz que o que se passa na arena pública, além do que ocorre na universidade, tem tido um papel em fomentar uma nova atenção voltada aos animais. Existem preocupações sobre a segurança da cadeia alimentar, além de livros populares sobre a recusa a matar e se alimentar de animais.
O hábito de se alimentar de animais é um assunto de interesse acadêmico importante, disse Gruen. “Dado que o momento em que a maioria das pessoas interage com os animais é quando eles estão mortos e são comidos, essa é uma questão bastante relevante”, acrescentou.
Os animais com os quais os seres humanos moram e pelos quais sentem amor também são um assunto importante.
Outra linhagem filosófica, exemplificada pelo escritor francês Jacques Derrida, tem exercido uma influência forte sobre os Estudos Animais. Ele considerou o modo como pensamos nos animais e por que nos distanciamos deles. Sua escrita é quase impossível de resumir em citações, uma vez que gira constantemente em torno de si mesma, ganhando intensidade à medida que ele brinca com a própria linguagem que utiliza para escrever sobre o que está tentando entender. Sua abordagem tem sido adaptada em uma profusão de trabalhos acadêmicos.
No livro “O animal que logo sou”, por exemplo, ele discute longamente não só o que pensa do seu gato, mas o que o seu gato pensa dele. Em uma frase – e pensamento – bastante simples para os seus padrões, ele escreve sobre o felino: “Um animal olha para mim. O que devo pensar dessa frase?”.
O que os animais pensam – na verdade, o que eles têm a dizer – é algo que os estudiosos agora levam muito a sério, reconhecendo, claro, que tal abordagem tem limites. Como disse Weil, referindo-se ao abismo entre animais e pessoas antes marginalizadas (os “outros”), como as mulheres ou afro-americanos, “ao contrário dos outros, esses outros não têm como responder, seja com a voz ou por meio da escrita, em uma linguagem reconhecida pela academia”.
A academia, ao que parece, reconhece e compreende Derrida e, às vezes, adere a sua palavra. Consideremos, por exemplo, o artigo “Animal, vegetal e mineral: a ética como extensão ou devir? O caso do devir-planta”, publicado em uma edição recente do periódico The Journal for Critical Animal Studies.
Outras publicações são bastante acessíveis. Os argumentos morais a respeito do ato de se alimentar de animais são claros. E há textos cuja leitura poderia beneficiar qualquer cidadão metropolitano, como “Como os pombos se tornaram ratos: a lógica cultural-espacial dos animais problemáticos”.
A grande variedade de temas, métodos, interesses e pressupostos dos Estudos Animais levanta perguntas a respeito de como a coesão da área se sustenta. Faculdades de Direito, por exemplo, oferecem rotineiramente disciplinas sobre animais e Direito. Faculdades de Veterinária disponibilizam cursos sobre a conexão humana com os animais. Também como parte dos Estudos Animais, algumas pessoas fazem cursos sobre como realizar terapias com animais.
Essa variedade não reduz nem um pouco a energia ou a importância do que está acontecendo, mas ao menos algumas das pessoas que trabalham com temas que podem ser incluídos na esfera dos Estudos Animais, como Jamieson, da Universidade de Nova York, e Desmond, de Illinois, acreditam que essa efervescência acadêmica ainda tem um longo caminho a percorrer antes que os Estudos Animais se tornem um campo acadêmico de contornos nítidos.
Desmond diz que tais estudos ainda “não constituem um campo”. Eles consistem, segundo a professora, em “uma comunidade acadêmica emergente”.
Algo que não falta para tal comunidade seguir adiante é energia. (Fonte: Portal iG)