Cientistas tentam desvendar mistérios da mímica da natureza

Talvez nenhum lugar tenha atraído e inspirado mais naturalistas importantes que o Brasil. Charles Darwin, em sua viagem épica no HMS Beagle, desembarcou pela primeira vez na Bahia em 1832; dois outros ingleses, Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates, chegaram ao Pará em 1848. Wallace percorreu a Amazônia por quatro anos; o incansável Bates, por 11.

Em 1852, um naturalista chamado Fritz Mueller aportou no país, vindo da Alemanha. Muito menos conhecido hoje, Mueller, ao contrário de seus contemporâneos ingleses, mudou-se para o Brasil com a esposa e o filho pequeno, e não tinha nenhuma intenção de voltar para a Prússia. Um livre-pensador que se recusou a fazer o juramento a Deus – obrigatório para obter a formação em Medicina –, Mueller trocou uma carreira médica na Europa por uma cabana sobre um chão enlameado nos limites de uma área de mata virgem na colônia de Blumenau, em Santa Catarina.

Embora Darwin e Wallace tenham vindo a conceber a teoria da evolução pela seleção natural, ela veio a ser aceita em grande parte graças a Bates e Mueller. Graças a eles, talvez nenhum grupo de animais tenha contribuído tanto para o desenvolvimento inicial da ciência evolutiva quanto as borboletas. Suas ideias continuam a inspirar naturalistas hoje e levaram a surpreendentes novos insights sobre o modo como a evolução funciona.

Os dois encontraram um Brasil repleto de borboletas coloridas. Bates notou, entre suas coleções, determinadas espécies cujos padrões brilhantes de asas se assemelhavam aos de outras famílias de borboletas que viviam na área. Ao investigar por que uma espécie imitaria outra, ele percebeu que as borboletas inofensivas estavam imitando espécies nocivas que eram intragáveis para aves e lagartos, e, portanto, não eram atacadas por predadores.

Apenas alguns anos depois de Darwin publicar “A Origem das Espécies”, Bates sugeriu que esse tipo de mimetismo – agora chamado de “batesiano” – constituía uma prova oportuna do princípio da seleção natural.

Bates era um colecionador de tempo integral, mas Mueller, inicialmente, ocupou-se com preocupações mais básicas. Durante os seus primeiros anos no Brasil, ele ganhou a vida como agricultor, criando galinhas e porcos e caçando com armadilhas, enquanto enfrentava inundações e se defendia de tribos indígenas hostis, onças e doenças tropicais. Por ser a única pessoa na sua colônia que tinha formação médica, coube-lhe a tarefa de atender os vizinhos que eram atingidos com flechas de 1,5 metro de comprimento.

À medida que sua família foi aumentando – Mueller chegou a ter seis filhas –, ele se mudou para uma cidade costeira para ensinar matemática, história natural e até mesmo um pouco de física e química. Sua posição lhe possibilitou explorar atividades mais intelectuais, e lá ele descobriu as novas teorias de Darwin.

“A Origem das Espécies” transformou a compreensão que Mueller tinha da natureza de tal modo que ele se inspirou a escrever o seu próprio livro, “Fur Darwin”, que apresentou fatos e argumentos em favor de sua teoria, incluindo as próprias observações de Mueller sobre as plantas e animais brasileiros. Os dois iniciaram uma correspondência entusiasmada e amigável que duraria 17 anos, até a morte de Darwin. Darwin se referia a Mueller como o “príncipe dos observadores”, e embora eles nunca tenham se encontrado, Mueller considerava Darwin um segundo pai.

A observação crucial de Mueller mudou a forma como o mimetismo era visto. Ele percebeu que as borboletas intragáveis também imitavam outras espécies de borboletas intragáveis na mesma área. Se elas já eram intragáveis, ele se perguntou, qual seria a vantagem de imitar outras espécies?

Ocorreu-lhe que as borboletas intragáveis se beneficiariam por viver em grandes números: em algum momento, os predadores ingênuos tomaram conhecimento da impalatabilidade das borboletas, e as espécies que as mimetizavam dividiram o custo desse aprendizado, enquanto que uma espécie intragável de padrão único teria de arcar com o custo total. Ele mostrou, por meio de uma álgebra simples, que duas ou mais espécies intragáveis se beneficiariam seguindo um padrão comum.

A seleção natural, assim, explicou por que padrões de asas de diferentes espécies convergiam. Mas como esses padrões de cores semelhantes, mas complexas, eram gerados por diferentes espécies? Essa era uma questão muito mais difícil, tendo frustrado os cientistas há quase 150 anos – até que uma equipe internacional de pesquisadores revelou recentemente segredos mais íntimos do mimetismo.

Os exemplos mais notáveis e famosos do que ainda é chamado de “mimetismo muelleriano” envolvem as borboletas Heliconius da América do Sul e Central. Em muitos casos, os padrões das asas de espécies diferentes na mesma área são notavelmente semelhantes. E o que é ainda mais notável é que cada espécie pode apresentar vários padrões diferentes, específicos de determinadas áreas. Os padrões das asas são tão semelhantes que é difícil até mesmo distinguir espécies que vivem a uma pequena distância – e essa é a chave do problema.

Há duas maneiras fundamentalmente diferentes pelas quais o mimetismo muelleriano pode ter evoluído: ou cada espécie evoluiu de forma independente, em mutações que fizeram surgir padrões de asas muito semelhantes, ou houve uma troca de genes de padronização entre as espécies.

Vários genes que controlam a produção dos padrões de asa já foram identificados, permitindo que os investigadores distinguissem entre essas alternativas. A resposta? Ambos os mecanismos desempenharam um papel.

Ao analisar as sequências de DNA de duas espécies de Heliconius distribuídas pela América do Sul, pesquisadores puderam identificar que cada espécie tinha evoluído de modo independente para até 20 padrões diferentes que eram quase idênticos em cada espécie. Contudo, em espécies intimamente relacionadas nas quais ocorria o mimetismo, eles descobriram que tinha havido uma troca de genes que determinam as cores.

Essas descobertas são igualmente interessantes. É surpreendente que tantos padrões possam ter sido gerados de forma independente e tenham sido replicados em diferentes espécies. E é surpreendente que haja espécies trocando genes na Amazônia. Afinal, a impossibilidade de procriar com os outros grupos foi por muito tempo considerada como parte da definição operacional de espécie.

No entanto, à medida que investigamos os genomas, continuamos a detectar evidências passadas de reprodução cruzada – entre os tentilhões de Darwin, por exemplo, e até mesmo entre os neandertais e nossa própria espécie, Homo sapiens. Mesmo que tais acasalamentos entre espécies sejam raras, um gene que confere uma grande vantagem, como o do mimetismo, pode se espalhar rapidamente pela população.

Uma das minhas observações favoritas a respeito do progresso científico nos foi oferecida pelo físico Jean Baptiste Perrin, ganhador do Prêmio Nobel, que disse que o segredo de qualquer avanço é poder “explicar algo visível e complexo por algo invisível e simples”. Depois de ficar envolta por mistérios durante mais de um século, a revelação dos genes invisíveis que geraram essa diversidade é um exemplo primoroso dessa máxima. (Fonte: Portal iG)