Pelo menos seis revistas científicas brasileiras estão suspensas de um índice mantido pela empresa Thomson Reuters, o chamado “Journal Citation Reports” (JCR), sob a alegação de que elas apresentaram número “anômalo” e “excessivo” de citações recebidas, de acordo com um boletim divulgado pela empresa. Ouvidos pelo G1, editores dessas publicações alegaram ter agido de boa-fé e terem sido vítimas de um erro de interpretação.
A suspensão ocorreu em junho e deve durar um ano. O “fator de impacto”, indicador usado para medir a relevância de uma revista científica, é calculado pelo número de citações que a publicação recebe por artigos divulgados em outros periódicos ou na própria revista por um determinado período. A publicação deste dado é que foi suspensa, segundo a Thomson Reuters.
“O fator de impacto oferece uma medida objetiva e importante sobre a contribuição de um periódico na divulgação científica, e sua distorção por uma excessiva concentração de citações é um assunto grave”, afirma a nota da empresa.
A decisão atingiu quatro publicações na área médica: a “Revista da Associação Médica Brasileira” (vinculada ao órgão de mesmo nome), a “Clinics” (publicada mensalmente pela Faculdade de Medicina da USP), o “Jornal Brasileiro de Pneumologia” (vinculado à Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia) e a “Acta Ortopédica Brasileira”.
Outros dois periódicos brasileiros constam na lista – a revista “Planta Daninha” e a “Revista Brasileira de Zootecnia”. No total, mais de 60 publicações internacionais foram listadas como suspensas, aponta o boletim da empresa.
O Journal Citation Reports divulga os dados analisados no ano anterior, portanto a suspensão atinge a divulgação do “fator de impacto” das publicações científicas de 2012.
‘Boa-fé’ – Os editores das revistas brasileiras ouvidos pelo G1 disseram ter agido de boa-fé, ser alvo de erro de interpretação e não ter tentado enganar o índice mantido pela empresa.
“Quisemos fazer algo para aumentar a internacionalização e a visibilidade, agimos de boa-fé, não fomos bem interpretados”, afirmou Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho, professor titular da Faculdade de Medicina da USP e editor-chefe do “Jornal Brasileiro de Pneumologia”.
Também professor titular da faculdade e vice-diretor clínico do Hospital das Clínicas da USP, Edmund Baracat, que assumiu a “Clinics” após a suspensão da revista no índice, evitou fazer críticas à Thomson Reuters e considerou a medida “um direito da empresa”.
Baracat ressaltou que a “Clinics” está adotando medidas para evitar problemas similares no futuro, como acompanhamento trimestral no número de citações feitas pela revista e um corpo editorial (composto de mais de um editor).
Editor-associado da revista “Planta Daninha”, Leonardo D’Antonino disse que é a segunda vez que a revista é suspensa no JCR – o caso ocorreu também em 2011. A alegação da Thomson Reuters, diz ele, é que a publicação fez autocitação – quando artigos de uma revista fazem referência ao próprio periódico.
Antonino, no entanto, negou que a revista tenha manipulado dados ou agido de má-fé. “Nós simplesmente reproduzimos na revista o que se produz de pesquisa científica na área no Brasil, 90% dos artigos são brasileiros. Há artigos vindos do Iraque, do Irã, do Afeganistão, do Egito”, diz ele, pontuando haver também uma quantidade significativa de submissões vindas de Portugal e da Espanha.
Os editores da “Acta Ortopédica Brasileira” e da “Revista Brasileira de Zootecnia” foram procurados pelo G1, mas não responderam até a publicação desta reportagem.
Amontoado de citações – As revistas médicas foram punidas pela prática do “citation stacking”, termo que pode ser traduzido como “empilhamento de citações” ou “amontoamento de citações”, que ocorre quando artigos de uma publicação mencionam a produção intelectual de outras revistas numa quantidade considerada excessiva.
Quando ocorre este problema, também chamado de “cruzamento de citações”, tanto a revista que fez as citações excessivas quanto aquela que as recebeu estão sob risco de suspensão, aponta a Thomson Reuters. A prática prejudica a formação do índice por distorcer o “fator de impacto”, diz a empresa.
A Thomson Reuters menciona como exemplo uma revista científica fictícia que passou de 2002 a 2008 recebendo poucas citações ou nenhuma de outro periódico (zero até 2004, de quatro a 11 até 2008) e de repente recebe 71 citações em 2009 e 67 em 2010. Se a análise mostrar que o percentual dessas citações anômalas chega a uma parte grande do total de menções feitas pela revista “doadora”, ambas podem ser suspensas.
O boletim da empresa não deixa claro qual o percentual máximo de citações que podem ser “trocadas” entre os periódicos, mas o exemplo apresentado mostra a revista “doadora” fazendo até 90% das citações obtidas pela revista “receptora”.
Artigos de revisão – O professor Carvalho, do “Jornal Brasileiro de Pneumologia”, reconhece que artigos de revisão divulgados em revistas científicas brasileiras em 2011 provavelmente ajudaram a causar o problema da suspensão. Ele menciona um artigo publicado em dezembro de 2011 na “Revista da Associação Médica Brasileira” revisando o que havia sido produzido no Brasil nos últimos anos termos de pesquisa cardiorrespiratória.
O artigo, afirma o professor, fazia mais de 230 referências a pesquisas publicadas em outras revistas. Só o “Jornal Brasileiro de Pneumologia” foi citado 83 vezes, aponta Carvalho. Para ele, no entanto, isso ocorreu por fatores como o baixo número de publicações científicas a respeito de áreas específicas no Brasil, como a pneumologia.
“Como o único jornal específico de pneumologia é o nosso, obviamente haveria um grande número de artigos [citados sobre o tema]”, afirma. Ele considera que a publicação que ele dirige não foi acusada de fazer um grande número de citações a outras em artigos, mas sim de recebê-las.
O objetivo dos editores das revistas suspensas, pondera o professor, não era aumentar o “fator de impacto”. “A ideia era expor aos pesquisadores, através de artigos de revisão, o que a ciência brasileira vem produzindo na área respiratória, ortopédica, cardiológica, a ideia era ampliar [o debate].”
Carvalho diz terem sido feitas várias reuniões entre editores de revistas nos últimos anos em que foram discutidas ações para obter maior exposição e internacionalização da pesquisa científica brasileira. Nessas reuniões foram feitas sugestões, como produzir mais artigos de revisão que avaliassem o conhecimento científico produzido no país. Provavelmente artigos deste tipo foram os responsáveis pelo problema, pelo ponto de vista do professor.
O docente avalia que a produção de artigos de revisão deste gênero nunca havia sido considerada inadequada. “Existem outras formas até mais simples de aumentar o ‘fator de impacto’, como a chamada ‘autocitação'”, que não foram encontradas nas revistas médicas pela Thomson Reuters, avalia Carvalho.
Comportamento anômalo – Uma nota da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) de julho reforça o caso, afirmando que a Thomson Reuters adotou a medida devido a um “comportamento anômalo destes periódicos no tratamento das citações que compõem o fator de impacto das revistas”.
Segundo a Capes, a decisão da empresa que divulga o índice ocorreu após a constatação de “excesso de citações cruzadas entre os periódicos”. O órgão governamental diz usar o “fator de impacto” para avaliação de programas de pós-graduação, além de outros indicadores.
A instituição condenou a prática. “O Conselho Superior [da Capes] considera inaceitáveis atitudes como estas, que não coadunam com os princípios da ética científica”, disse, em nota.
Após o caso, o órgão anunciou que retiraria as revistas científicas brasileiras e internacionais punidas da base de dados do Qualis Periódicos, um dos quesitos utilizados para avaliar e classificar a qualidade da produção dos programas de pós-graduação no país.
Tanto Carvalho quanto o editor-chefe da “Revista da Associação Médica Brasileira”, Bruno Caramelli, que também é professor da Faculdade de Medicina da USP, consideraram a punição da Capes mais severa que a da Thomson Reuters.
“Estamos detectando uma queda na submissão e nos artigos já aprovados, que o autor pede para retirar porque não vai estar no Webqualis e, portanto, não entrará para a avaliação da pós-graduação”, disse Caramelli, segundo uma nota divulgada pela Associação Médica Brasileira (AMB).
“A partir do momento em que essas revistas são retiradas do sistema [Capes], todo e qualquer pesquisador brasileiro deixa de procurar essas revistas para publicar seu trabalho”, afirmou Caramelli.
A Capes foi procurada pelo G1 por telefone e e-mail para opinar sobre as questões levantadas pelos editores das revistas, mas não se pronunciou até o fechamento da reportagem. O órgão considerou que a “única resposta oficial” a ser dada é a nota oficial divulgada em julho.
Prazo para terminar – Carvalho aponta que a penalidade no índice internacional tem prazo para terminar – as publicações devem ser reavaliadas em 2014 e podem voltar ao JCR. Não está claro, no entanto, se o mesmo ocorrerá no sistema da Capes, diz ele. “A Capes tomou uma atitude violenta, sem conversar com os editores, simplesmente excluiu”, reclama.
Para o professor, o órgão do governo poderia ter convocado os editores das revistas, discutido os motivos, feito sugestões e tentado alternativas. “Essa medida da Capes desestimula o envio [de artigos científicos]. É uma punição contra a pós-graduação”, considerou.
Na opinião do docente, a Capes deveria considerar que são revistas prestigiadas, com 40 ou mais anos de existência. “Você manter um periódico científico por décadas é um desgaste, um investimento enorme”, afirma. “Eu não iria me meter a fazer uma coisa espúria, todos nós somos professores e pesquisadores, trabalhamos com ensino, tenho reconhecimento das minhas pesquisas nacional e internacionalmente.”
Carvalho considera que a Capes possui um sistema de avaliação da pós-graduação muito baseado no “fator de impacto”. “Essa é a opinião de um grande número de pesquisadores brasileiros. A Capes deveria ter uma forma de avaliar a importância da pesquisa”, e não focar com tanta ênfase em citações, afirma.
Leonardo D’Antonino relata dificuldades com a “Planta Daninha” após a suspensão pela JCR e a punição da Capes. “Prejudica demais, derruba o trabalho. Podemos ter problemas de financiamento”, lamenta, contando que o número de artigos submetidos caiu desde o ocorrido.
Baracat diz que houve queda de cerca de 50% no número de artigos submetidos à “Clinics”. Antes da suspensão, o número de trabalhos enviados chegava a 80 por edição – eles são analisados e há um controle de qualidade, só uma parte entra na revista, diz o professor.
Uma medida mais justa, na avaliação do professor, seria a Capes retirar os artigos das revistas científicas suspensas referentes apenas ao ano em que a publicação foi punida. “Trabalhos publicados antes da decisão [da empresa] deveriam ser considerados. Na época em que eles foram publicados, não houve problema algum.” (Fonte: G1)