O regime militar brasileiro acabou há quase 30 anos, mas sua herança permanece evidente nas esferas das estruturas do poder criado para “desenvolver” a região amazônica, nos impactos ambientais causados por grandes obras sem estudo prévio e na violação dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais.
Esse alerta foi o teor do debate “Amazônia contra o autoritarismo – 50 anos depois”, promovido pelo Ministério Público Federal na sexta-feira (28), na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
A sombra do regime militar também permanece na retomada de obras planejadas naquele período. O exemplo mais notório são as obras de usinas hidrelétricas, sendo a mais emblemática a de Belo Monte, projetada nos anos 70 e que foi desengavetada no governo Lula e executada no governo Dilma. A diferença é a consolidação de movimentos sociais que se fortaleceram para confrontar estes projetos.
Um dos aspectos mais evidentes desta herança é a continuidade de órgãos criados pouco tempo depois do golpe de 1964, como a Sudam (Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia), o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e até mesmo a Zona Franca de Manaus e a manutenção dos mesmos moldes e interesses econômicos e políticos construídos já naquele período.
“O autoritarismo não está só no período ditatorial. Ele está nos períodos ditos democráticos. A criação da Sudam, quase junto com a Suframa, veio com a ideia de reunir interesses industriais com os interesses sobre as terras e sobre os recursos naturais e de criar uma poderosa coalizão de interesses. Veio com a tentativa de fazer que essa coalizão de interesses represente a identidade regional”, disse o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida no debate.
Ele observou que, durante o discurso de abertura da Sudam, em 1966, o então ministro do Planejamento, Roberto Campos (governo de Castello Branco) ressaltou que a “verdadeira” vocação da Amazônia era a mineração, e não o extrativismo vegetal.
Junto à mineração, outros interesses foram incorporados: madeireiros, projetos agropecuários, indústrias beneficiadas por incentivos fiscais. Projetos que estão hoje cada vez mais fortes nas agendas governamentais.
“Tem algumas instituições permanentes na sociedade brasileira que nos obrigam a repensar esse autoritarismo que transcende aos próprios períodos autoritários. Essa reflexão ganha corpo hoje porque a sociodiversidade e os fatores étnicos estão fortes na vida cotidiana. Se apresentam mais completa, estigmatizadas, com violências permanentes”, comentou.
Na Amazônia, conforme o antropólogo, esta situação se agrava, mas ele destaca que a resistência de formas organizativas dos movimentos sociais é que difere o momento atual daquele período.
“Temos recursos naturais estratégicos. O desenvolvimentismo bebe nas fontes do autoritarismo, mas ele não repete exatamente os anos 70. A construção de Tucuruí não é igual a Santo Antonio e Jirau. A nossa forma de perceber mudou muito rapidamente”, afirmou.
O evento na Ufam foi assistido por uma plateia de mais de 100 pessoas e contou com a presença do procurador da República Julio Araujo, do indígena Ivanildo Tenharim, do procurador do Trabalho Renan Kalil e do indigenista Egydio Schwade.
Um grupo formado por vários ribeirinhos que vivem em comunidades na zona rural de Manaus e cujas terras são ocupadas pelo Centro de Treinamento de Guerra na Selva (Cigs) também esteve presente. Eles lembraram que, em 2009, o Exército tentou retirá-los das comunidades e transferi-los para outra área da zona rural de Manaus. Os ribeirinhos resistiram e se mobilizaram para permanecer na área. As comunidades mais afetadas são Jatuarana e São Francisco do Mainã.
O conflito fundiário começou no início dos anos 70, quando as terras, pertencentes ao Estado do Amazonas, foram doadas pelo governador Danilo Areosa à União para receber soldados em treinamentos.
Na época, não se falou que, diferente do discurso do “vazio demográfico”, havia famílias ribeirinhas morando na área. Depois de vários conflitos, impasses e tentativas de diálogos, as famílias estão atualmente em processo de regularização fundiária e tentam conviver pacificamente com o soldados do Cigs, apesar das restrições para se deslocarem em locais pré-determinados (não podem pescar em todos os lagos, por exemplo) devido aos treinamentos.
Em outubro de 1970, o marco inicial da Transamazônica era inaugurado pelo então presidente Emílio Garrastazu Médici. O general realizou a solenidade no município de Altamira, no Pará. Para “comemorar” o momento, uma castanheira foi derrubada. Dois anos depois, a rodovia que atravessa as regiões Norte e Nordeste projetada para marcar o regime militar, era inaugurada. A Transamazônica fazia parte do projeto do regime militar de ocupação da Amazônia, em uma época em que se propagava que a região era um vazio populacional.
Ao mesmo tempo em que a obra da rodovia destruía imensas áreas de floresta, impactava a fauna da região e incentivava a imigração, no território do estado do Amazonas, uma terra indígena estava sendo atravessada e impactada. Índios tenharim viram sua população ser drasticamente reduzida e os índios jiahui quase desapareceram, com população atual estimada em 100 pessoas.
Mais de 40 anos depois, não deixa de ser relevante lembrar que os efeitos negativos da Transamazônica perduram. Os tenharim e os jiahuis nunca receberam compensação alguma. E o que pensa Ivanildo Tenharim, liderança indígena e secretário para os povos indígenas de Humaitá, no sul do Amazonas sobre este período?
“A ditadura deixou uma cicatriz muito grande, uma ferida ainda viva nos povos indígenas. Meu pai trabalhou na obra sem receber nada, como se fosse escravo. E nunca fomos compensados. Depois chegaram os madeireiros e os fazendeiros que não gostavam da gente. Essas consequências estão até hoje. Mas parece que a ditadura quer voltar de outra forma. Os indígenas não são mais consultados sobre os projetos que afetam suas vidas”, afirmou Ivanildo, que participou no debate realizado na Ufam. (Fonte: Terra)