Num bairro de San Mateo, na Califórnia, duas casas conjugadas se distinguem das vizinhas. Nelas, em vez dos tradicionais gramados das casas de subúrbio americano, há hortas e pomares que alimentam as dez famílias que ali vivem.
Nos fundos do complexo, flores e frutos atraem pássaros e abelhas, que se agrupam numa colmeia à beira de uma lagoa salobra. É inverno e as águas da lagoa estão baixas, como estão baixos os reservatórios da Califórnia após três anos de seca. Mas para Sanda Everette, fundadora da comunidade, os tempos são de abundância.
“Hoje posso passar o ano inteiro sem ter de comprar qualquer produto agrícola”, diz a professora aposentada, rodeada por ameixeiras carregadas e pés de dezenas de variedades de verduras e legumes.
Faz quase vinte anos que Everette e seu marido, Brian, se instalaram ali, inspirados pelos ideais da Contracultura dos anos 1960. Queriam viver numa comunidade, trabalhar a terra, tomar decisões em conjunto. Rejeitavam o consumismo do Sonho Americano e temiam seus efeitos no equilíbrio ecológico do planeta.
Com o tempo, outras famílias que partilhavam dos valores foram chegando. A comunidade cresceu, e a Ecovila San Mateo, como acabou batizada, tornou-se um modelo para ambientalistas e moradores que buscavam um estilo de vida mais sustentável e natural nos arredores de San Francisco.
Quando a seca na Califórnia alertou os moradores sobre a necessidade de poupar água e reavivou um debate sobre os padrões de consumo dos americanos, Everette sentiu que tinha algo a compartilhar.
A começar por suas formas de economizar água no banheiro. “Nos anos 1970, tínhamos um ditado que dizia: se é amarelado, deixe acumulado; se é marrom, aperte o botão” (“If it’s yellow, let it mellow; if it’s brown, flush it down.”) Seguimos essa regra até hoje.”
Ela também diz pôr um balde no chuveiro enquanto espera a água esquentar, aproveitando o líquido acumulado para irrigar a horta.
Ali na ecovila, diz Everette, não se gasta água regando gramados, e cada gota despejada na horta vai parar no prato dos moradores. Até mesmo as plantas daninhas viram comida para as galinhas, e seu esterco é usado como adubo.
Além das vantagens para a saúde de ter produtos frescos o ano todo, ela diz que as práticas reduzem a dependência da casa por alimentos transportados por longas distâncias – poupando a emissão de combustíveis fósseis – ou oriundos do agronegócio – que, segundo Everette, “desperdiça muita água e usa muito agrotóxico”.
Mas a tecnologia adotada pela casa que, segundo ela, pode fazer a diferença para a Califórnia e outras regiões sob secas severas é o sistema aquapônico instalado no quintal. O sistema consiste em dois tanques de água interligados, onde se criam peixes e se cultivam verduras. É uma estrutura circular: as plantas filtram a água para os peixes, e os dejetos dos peixes nutrem as verduras.
Como os tanques estão cobertos, diz Everette, há pouca evaporação e não é preciso adicionar água ao sistema. E assim a casa passou a contar também com uma fonte de proteína animal.
Mudanças climáticas – “Muitas pessoas estão despertando para a necessidade de mudar seus padrões de consumo”, diz à BBC Brasil Kate Litfin, professora de ciência política da Universidade de Washington.
Litfin publicou no ano passado o livro Ecovilas: lições sobre formas de vida sustentáveis (sem lançamento previsto no Brasil), baseado no período que viveu em 14 comunidades em cinco continentes. Segundo a Rede Global de Ecovilas, ecovilas são comunidades tradicionais ou intencionais administradas coletivamente e que integram ecologia, economia e cultura para regenerar ambientes sociais e naturais.
Os lançamentos da obra na Califórnia foram especialmente concorridos, diz a professora. “Os eventos estavam transbordando de gente, e todos estavam muito interessados na minha experiência. Tenho certeza de que isso tinha a ver com a seca”.
Litfin diz acreditar, porém, que o número de comunidades que se definem como ecovilas nos Estados Unidos não tem crescido – e não por falta de vontade, mas porque as terras no país são muito caras. Segundo a Companhia das Comunidades Intencionais, grupo que mapeia vários tipos de comunidades alternativas pelo mundo, há 205 unidades na Califórnia, muitas delas baseadas em princípios sustentáveis.
Ainda assim, a professora afirma que “embora não possamos construir novas ecovilas para todos, podemos e devemos integrar seus princípios às nossas vidas. E isso está acontecendo”.
Indústria da carne – A 140 quilômetros de San Mateo, na rica cidade de Davis, galinhas ciscavam soltas enquanto três rapazes arrancavam ervas daninhas do quintal de casa. Eram cumprimentados por vizinhos que passavam em shorts e camisetas fluorescentes, exercitando-se no fim da tarde.
“É bem mais difícil plantar sua própria comida que comprá-la no supermercado, mas quero viver conforme os meus valores”, diz David Abramson, um dos oito moradores da residência.
A casa é registrada como uma cooperativa e gerenciada por uma associação filantrópica, que aluga os quartos por preços abaixo do mercado. Para viver lá, deve-se ser estudante ou ter baixa renda, segundo os padrões locais.
Como na Ecovila San Mateo, os moradores ali dizem buscar reduzir ao máximo seu impacto no planeta. Segundo Abramson, quase toda a eletricidade da casa vem de painéis solares e, durante o verão, é comum eles receberem dinheiro da companhia fornecedora de energia elétrica por gerar mais energia do que consumir.
Com a seca, diz Abramson, os moradores têm buscado reduzir ainda mais seu consumo de água. Para irrigar a horta, recorrem apenas à água usada para lavar a louça, coletada num balde na pia (o detergente é biodegradável).
E passaram a evitar comprar alimentos cuja produção consuma muita água, como carne. Abramson conta que ali se consome proteína animal uma vez por mês, quando eles próprios matam as galinhas mais velhas do quintal.
Não é uma tarefa fácil, diz ele, já que as aves viraram quase animais de estimação. “Matá-las tem um custo emocional para nós, mas sinto que assim damos a importância devida a esse ato e não o banalizamos.”
Individualismo – Para a professora Karen Litfin, o maior obstáculo para a disseminação de formas de vida mais sustentáveis nos Estados Unidos é o individualismo. “Muitas pessoas ainda querem ter seu próprio carro, seu espaço privado, isso está muito enraizado na psique do estilo de vida americano.”
“A boa notícia”, afirma ela, “é que os custos ambientais de permanecer nessa rota serão tão altos que o problema terá de ser enfrentado coletivamente, por governos e a sociedade como um todo.”
“Vai chegar um momento em que esses padrões de vida terão de ser alterados, e não haverá escapatória.” (Fonte: G1)