Cercado em polêmicas, o Marco da Biodiversidade foi sancionado nesta quarta-feira pela presidente Dilma Rousseff sob a promessa de destravar a pesquisa científica e o desenvolvimento de novos produtos farmacêuticos a partir de recursos naturais do país.
A nova lei – que substituiu uma antiga legislação mais burocrática – foi festejada pela indústria farmacêutica e criticada por ambientalistas e comunidades donas de conhecimentos tradicionais, como indígenas, quilombolas e extrativistas.
De um lado, o Grupo FarmaBrasil, que reúne laboratórios farmacêuticos brasileiros, estima que o novo marco vai gerar a “aplicação de R$ 332 milhões em pesquisa e desenvolvimento de novas drogas baseadas na flora brasileira até o final de 2016”. De outro, comunidades tradicionais dizem que essa legislação ameaça seus direitos garantidos internacionalmente.
Regras internacionais preveem que esses grupos devem ser compensados no caso de seus conhecimentos sobre o uso de recursos naturais, como ervas ou secreções de animais, servirem para o desenvolvimento de produtos – é o caso, por exemplo, de uma combinação de ervas criada por um povo indígena que gere um medicamento ou cosmético.
Embora a nova lei estabeleça compensações, elas estão sendo consideradas insuficientes, já que o marco isenta pequenas companhias e produtores de insumos do pagamento. Apenas grandes empresas que venderem produtos finais, em que o elemento da biodiversidade brasileira tiver peso importante no valor do produto, deverão pagar as compensações.
“A legislação anterior era muito ruim, tão burocrática que não gerava negócios. Mas há tantas isenções agora, que o fato de haver mais negócios não significa que as compensações crescerão da forma como deveriam”, argumenta Nurit Bensusan, assessora do Instituto Socioambiental, umas das organizações que crítica o novo marco.
O governo e a indústria farmacêutica, por sua vez, argumentam que as isenções são necessárias para viabilizar economicamente o setor. Segundo a diretora-executiva adjunta do Grupo FarmaBrasil, Adriana Diaféria, o pagamento de compensações sobre produtos intermediários da cadeia encareceria esses insumos baseados em recursos naturais do país, estimulando sua substituição por itens equivalentes, gerados de outros materiais.
A administração de Dilma Rousseff sustenta que a nova legislação significará sim mais compensações, na medida em que facilitará a pesquisa e o desenvolvimento de novos produtos. Na cerimônia de sanção, a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, destacou que nos últimos 12 anos foram firmados apenas 136 contratos de repartição de benefícios – 80% deles nos últimos três anos – devido à antiga legislação. “Será reduzida a burocracia para o desenvolvimento de novos produtos. A biodiversidade começará a ser vista como ativo estratégico do desenvolvimento econômico”, observou.
Ao sancionar o extenso marco, a presidente fez apenas seis vetos pontuais, divulgados nesta quinta-feira, que não afetam a essência do projeto. Entre eles, eliminou uma das isenções ao vetar o dispositivo que determinava que produtos gerados agora a partir de pesquisas iniciadas antes de 2000 não gerariam compensações.
‘Ruindade’ – Uma das lideranças das comunidades tradicionais, Manoel Cunha, do Conselho Nacional das Populações Extrativistas, diz que apesar de toda “ruindade”, a nova legislação é melhor que a anterior.
Ainda assim, frisa que o novo marco não atende aos povos tradicionais em sua totalidade e se queixa do peso maior que as empresas tiveram ao longo do processo de negociação com o governo e o Congresso.
“Comemos mosca, fomos mais lentos do que as empresas. As empresa foram para dentro, colocaram todas a suas ideias e sua força política, e o governo conduziu (o processo) à luz delas”, disse.
Cunha esteve na cerimônia de sanção da nova lei junto com mais 17 lideranças dessas comunidades que vieram à Brasília nesta semana para um seminário sobre biodiversidade. “Estávamos muito revoltados inicialmente, mas tomamos a decisão política de ir à cerimônia para negociarmos. Esperamos poder fazer uma regulamentação que possa dar uma cara mais de povos e comunidade tradicionais para essa lei que está muito empresarial”, explicou.
Em seu discurso, Dilma disse que “as empresas, os representantes da academia e povos e comunidades tradicionais têm que participar em um processo em que o objetivo é tornar a regulamentação prática, ágil, eficiente e que garanta que todos ganhem”.
Na abertura de sua fala, porém, deu especial destaque ao papel da indústria no processo de formulação da nova lei. Após citar inúmeras autoridades presentes, Dilma dirigiu “um cumprimento especial a uma pessoa que lutou bastante pela aprovação dessa lei, pelo envio dessa lei. Eu me refiro ao presidente da Febrafarma (Grupo Farmabrasil, na verdade), o (Reginaldo) Arcuri”.
A proposta do marco foi construída dentro do Ministério do Meio Ambiente, com participação ativa da indústria farmacêutica, e depois encaminhada para apreciação no Congresso, onde as comunidades tiveram mais envolvimento nas discussões. Mas, embora os senadores tenham acatado sugestões desses grupos, elas foram derrubadas na votação da Câmara dos Deputados.
O secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente, Franciso Gaetani, reconheceu à BBC Brasil que os povos tradicionais não tiveram tanta participação no debate de formulação do marco, mas disse que as críticas ao conteúdo da lei eram improcedentes e que a nova legislação beneficiava os grupos tradicionais.
Capacitação – Além de maior participação na regulamentação da lei, as comunidades cobram também a criação de um conselho de assistência com objetivo de qualificar esses povos no entendimento do marco, para que possam negociar os acordos com as empresas. Essa foi uma das propostas aprovadas no Senado, mas depois excluída na Câmara dos Deputados.
As novas regras modificaram a forma como empresas e cientistas dão início às pesquisas e firmam acordos com as comunidades. Agora, não é preciso mais autorização prévia para pesquisar, mas apenas para comercializar produtos desenvolvidos ao fim desses estudos. Para iniciar pesquisas, bastará um registro eletrônico.
Já a autorização para comercialização do produto e o contrato de repartição de benefícios entre empresas e grupos tradicionais poderão ser firmados até um ano depois do seu lançado no mercado – esse prazo visa dar tempo para que as companhias avaliem o potencial mercadológico do produto antes de fixar as compensações a serem pagas.
Os recursos vão diretamente para as comunidades ou para um fundo gerido pela União, dependendo do caso. Por exemplo, se o produto usar recurso genético da biodiversidade brasileira que não estava associado a um conhecimento tradicional, a compensação vai para esse fundo ou pode ser implementada diretamente pela empresa em forma de ações de preservação ambiental.
A regulamentação detalhará como se dará esse registro eletrônico. Nurit Bensusan, do ISA, defende que ele seja “bem completo” para garantir a rastreabilidade da pesquisa e dos produtos que sejam gerados.
O processo de regulamentação também deve abordar outro tema polêmico, que é a forma como serão negociados os acordos em caso de mais de uma comunidade possuir o conhecimento tradicional usado no desenvolvimento do produto.
Segurança jurídica – O modelo anterior de autorização de pesquisa, considerado mais confuso e burocrático, levou à aplicação de muitas penalidades sobre empresas e instituições acadêmicas.
Desde 2005, quando entrou em vigor um decreto regulando as sanções no caso de desrespeito dessas regras, o Ibama já aplicou mais de R$ 230 milhões em multas, resultado de quase 600 autos de infrações contra instituições brasileiras e multinacionais.
Entre elas estão grandes empresas (Avon, Natura, Ambev, Boticário, Johnson & Johnson, L’Oréal, Unilever, etc), laboratórios e farmacêuticas (Pfizer, Abbott, Medley, Merck, etc); e até mesmo a Embrapa (estatal que faz pesquisas para o setor agropecuário) e universidades públicas (USP, UERJ, UFMG, UFRGS, UFPB, etc), que costumam recorrer das multas.
Adriana Diaféria, do Grupo FarmaBrasil, disse que o setor ficou “bastante satisfeito” com o novo marco, que trará “mais segurança jurídica para os investimentos”.
Já a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – instituição que representa mais de 120 sociedades científicas – comemorou parcialmente a nova legislação. Se por um lado a comunidade acadêmica considerou positiva a desburocratização da pesquisa, de outro lamentou “o retrocesso aos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais”.
“Em nosso entendimento, a ética e o respeito aos direitos adquiridos é condição sine qua non para o desenvolvimento de uma ciência séria”, disse a presidente da SBPC, Helena Nader, em artigo no portal da instituição. (Fonte: G1)