Se não houver novos imprevistos, em maio de 2016 será finalmente instalado um detector de neutrinos junto à parede externa do reator nuclear de Angra 2, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro.
O detector foi projetado para monitorar em tempo real o nível de atividade do reator. Funcionará como uma ferramenta adicional de salvaguarda de proteção para certificar que o combustível nuclear (urânio enriquecido) ou seu refugo (plutônio) não estão sendo retirados de forma não declarada de usinas – o que poderia ser um indício de descaminho para uso em armas nucleares.
“A Eletronuclar, operadora de Angra 2, quer checar a sua viabilidade técnica”, diz Ernesto Kemp, do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O detector de neutrinos foi totalmente projetado e construído no Brasil e tem o apoio da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
O projeto final do dispositivo está detalhado no trabalho “Using Neutrinos to Monitor Nuclear Reactors: the Angra Neutrino Experiment, Simulation and Detector Status”, que acaba de ser publicado no periódico Nuclear and Particle Physics Proceedings. A pesquisa conta com recursos de diversas agências de fomento brasileiras, incluindo o apoio da FAPESP.
A fissão do urânio enriquecido no interior de um reator nuclear gera energia e lixo radioativo, como o plutônio. Também gera as menores e as mais numerosas partículas subatômicas que se conhece, os neutrinos. Eles não possuem carga elétrica (como seu nome indica) e até os anos 1990 não se sabia se tinham massa. Hoje se sabe que têm, mas é muito menor que a de um elétron. Se por um lado a massa dos neutrinos é quase desprezível, por outro lado eles são produzidos em quantidades assombrosas a partir das reações termonucleares no núcleo das estrelas.
O Sol banha a Terra com um tsunami incessante de neutrinos que atravessa a atmosfera, vara o planeta inteiro e segue em frente como se tivesse cruzado o vazio. Os neutrinos são tão diminutos que 60 milhões deles atravessam cada centímetro cúbico do seu corpo a cada segundo, como se todos os átomos e células que o compõem não existissem.
É exatamente essa propriedade fantasmagórica dos neutrinos que servirá para monitorar a atividade do reator de Angra 2. Apesar de o reator estar blindado por metros e mais metros de chumbo, aço e concreto, os neutrinos gerados na fissão atravessam todas aquelas barreiras como se não existissem. O detector de neutrinos ficará encostado na parede externa da usina, a 30 metros do reator. Assim, poderá monitorar o fluxo de neutrinos e aferir o nível de atividade da usina.
“Para roubar plutônio, é preciso desligar o reator”, explica João dos Anjos, colíder do projeto, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e diretor do Observatório Nacional. “Se baixar a potência do reator, serão gerados menos neutrinos. Existe uma relação linear entre a potência do reator e a quantidade de neutrinos gerados. Esperamos detectar cerca de 5 mil interações por dia.”
Nova técnica – Para detectar 5 mil neutrinos por dia, o dispositivo precisa de uma sensibilidade extrema. O detector de neutrinos é formado por um tanque com uma tonelada de água ultrafiltrada, cercado por 32 fotomultiplicadores. Grosso modo, toda vez que um furtivo neutrino se chocar com os átomos da água no detector (uma probabilidade baixíssima, mas que eventualmente ocorre), irá emitir luz na forma de fótons com intensidade suficiente para serem “enxergados” pelos fotomultiplicadores.
A cada segundo, o reator de Angra 2, com potência térmica de 4 gigawatts, produz 100 bilhões de trilhões de neutrinos (1022 neutrinos). Distante 30 metros, o detector será banhado a cada segundo por 1 trilhão de neutrinos (1012 neutrinos). A princípio espera-se que apenas e tão somente 5 mil sejam reportados por dia. Na prática, espera-se detectar uns 2.500. “Por dois motivos: o detector não é 100% eficiente e a filtragem do ruído causado por fontes naturais de radiação jogará fora uma fração considerável de eventos genuínos”, diz Ernesto Kemp.
Segundo João dos Anjos, “detectores de neutrinos em reatores nucleares são uma técnica já experimentada no Japão e na França. São detectores bem maiores, de 20 a 80 toneladas, enterrados em minas ou túneis. O nosso tem 1 tonelada. O grande desafio é criar um detector pequeno e móvel, que fique na superfície. É uma técnica nova que precisa ser testada.”
Para tanto, o hardware e o software de análise precisarão distinguir as interações geradas pelos neutrinos do reator daquelas geradas pelo ruído de fundo, causado pelos raios cósmicos, pela torrente de neutrinos solares e pela radiação natural do meio ambiente. Num detector enterrado e blindado, todo esse ruído é minimizado. “Como vamos operar na superfície, nossa blindagem é zero. Os sinais de raios cósmicos podem mimetizar e falsear um sinal de neutrino do reator. Não podemos incorrer em erros”, afirma Ernesto Kemp.
Uma vez que o detector de neutrinos entre em operação, os dados de todas as interações serão enviados por uma linha dedicada ao CBPF, no Rio de Janeiro, para filtragem e análise em tempo real. Esta é uma grande vantagem do detector brasileiro com relação aos atuais dispositivos de controle que a AIEA impõe às usinas nucleares. Para certificar que não se está retirando plutônio, os reatores são vigiados por câmeras e sensores de temperatura. Suas portas são lacradas com selos especiais. “São métodos invasivos que os operadores das usinas não gostam, pois atrapalham a operação”, diz João dos Anjos. “Nosso detector é externo à usina e não interfere na sua operação.”
O detector de neutrinos está neste momento em testes no CBPF. Em maio, será remontado dentro de um contêiner de 12 metros que já está em Angra 2. “Teremos que remontar no período mais curto possível. A gente não pode ficar circulando livremente na usina. Tem que ter escolta”, diz João. “As normas de segurança de uma usina nuclear são muito rígidas – como tem que ser –, o que torna difícil o trabalho. Temos de cumprir todas as regras e controles.”
Uma longa novela científica – As primeiros reuniões do projeto começaram em 2005. Onze anos se passaram. A ideia inicial era construir um detector pequeno e outro muito maior, de 50 toneladas, enterrado embaixo do Morro do Frade, que fica a 1,5 quilômetro de Angra 2.
O grande detector foi orçado em US$ 50 milhões. Esse design preliminar era voltado para o estudo de oscilações de neutrinos. Na época existiam vários grupos com propostas similares espalhadas pelo mundo. Por questões de custos, vários grupos se uniram e o grupo brasileiro se juntou ao experimento de oscilação de neutrinos Double Chooz, que foi construído na França.
“Com essa mudança, o grupo brasileiro que já estava articulado em torno da construção de um detector de neutrinos de reatores no país resolveu levar adiante a ideia, mas com objetivo diferente, nesse caso o monitoramento da atividade do reator”, diz Kemp. Esse dispositivo menor, que é móvel, custou R$ 1 milhão, bancado principalmente pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). “Todo o processo de projeto e construção do detector foi longo, cheio de imprevistos e complicações.”
O design inicial previa um detector cheio de cintilador líquido, mais preciso do que o de água ultrapura. “Nós informamos os operadores de Angra 2 que pretendíamos usar cintilador líquido. A princípio eles não se opuseram”, diz Kemp. “Só quando o design ficou pronto foi que eles o barraram. Alegaram que o uso de cintilares era inseguro, por existir um risco baixíssimo, porém real, de combustão. Daí optarmos pelo detector de água, que é menos preciso, porém mais seguro. Todo o trabalho desenvolvido entre 2006 e 2008 foi quase integralmente descartado.”
Antes da construção, o projeto passou por simulações em computador, a cargo do físico Pietro Chimenti, então na Universidade Federal do ABC. Segundo ele, “a ideia da simulação é que ela seja a melhor representação do experimento. Na medida em que vão se obtendo resultados, a simulação vai sendo refinada, até chegar ao resultado definitivo.” Com a troca do cintilador líquido por água, as simulações tiveram que ser feitas e refeitas.
Será o primeiro detector de neutrinos construído e operado integralmente no Brasil. “Nós, físicos brasileiros, já participamos de forma relevante em experimentos de partículas nos grandes laboratórios mundiais. Construir este detector nos deu grandes lições sobre como fazer ciência por aqui. Em caso de resultados positivos, estaremos contribuindo para a missão da AIEA de monitoramento do destino seguro de rejeitos nucleares”, afirma Kemp. (Fonte: Agência FAPESP)