O país nórdico onde crianças pequenas são ensinadas a manusear facas em plena floresta

Um popular modelo de ensino da Dinamarca tem a floresta como sala de aula. Não por acaso chamadas de jardins de infância florestais, essas escolas tiram as crianças do ambiente fechado e as levam para aprender por meio de brincadeiras e experiências ao ar livre.

A primeira reação de quem se depara com o sistema é, com frequência, o espanto. Isso porque nele crianças de 2 a 6 anos são pouco supervisionadas, podem escalar árvores altas, manuseiam facas afiadas, lidam com animais, ficam próximas a fogueiras e dormem sob o frio às vezes congelante do inverno dinamarquês.

“Lembro-me de ter visto uma criança no topo da árvore, chamei um pedagogo e disse: ‘tem uma criança lá em cima’; e ele respondeu: ‘sim, tem sim’. Chocada, eu questionei: ‘mas ela pode cair!’; ‘Sim’, disse o pedagogo, ‘pode, mas geralmente não cai'”, descreve Jane Williams-Siegfredsen no livro Understanding the Danish Forest School Approach (Compreendendo a abordagem da escola florestal dinamarquesa, em tradução livre).

Mais de duas décadas depois do primeiro contato, Jane hoje advoca pela disseminação do modelo e faz treinamentos em diversos países, como Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Portugal.

“Vinda de uma cultura de superproteção e de constante preocupação de que as crianças corram riscos, aquilo parecia assustador”, explica Jane à BBC Brasil. “É uma surpresa perceber o quão confiantes e competentes as crianças são ao ar livre.”

Desde os anos 1950 – O modelo surgiu na década de 1950 em Copenhague, capital da Dinamarca. Hoje há escolas do tipo em todo o país.

Não há estatísticas oficiais nacionais. Mas só a capital abriga em seus arredores 91 delas, de um total de 3.975 instituições. São cerca de 4 mil alunos, num universo de 20 mil, segundo dados da prefeitura.

Nos jardins de infância florestais, as crianças brincam, exploram a área verde, observam insetos, cuidam de animais como coelhos, constroem estruturas de madeira, cantam, escutam histórias, dormem em cabanas abertas e cozinham sobre fogueiras, além de aprenderem sobre matemática, biologia e outras disciplinas com a ajuda de objetos naturais ou observação do ambiente.

As estruturas das escolas podem variar. Há aquelas que funcionam exclusivamente dentro de florestas, as que levam as crianças em ônibus para passarem dia na natureza e as que dividem suas atividades entre dentro e fora de sala, embora com foco na atividade ao ar livre. Costumam funcionar de 7h às 17h, com turmas entre 10 e 20 crianças, supervisionadas por entre dois e quatro pedagogos.

“(Os jardins de infância florestais) reafirmam a importância da brincadeira como forma de aprendizado, engajam a criança no contato com a natureza, despertam empatia, inclusive de animais, desenvolvem habilidades motoras e sociais. Quando adultas, elas serão capazes de gerenciar situações de insegurança e desafiadoras com mais facilidade”, afirma Iben Dissing Sandahl, professora e psicoterapeuta não ligada a nenhuma escola ou instituição, autora do livro The Danish Way of Parenting (A maneira dinamarquesa de educar, em tradução livre), que será lançado no Brasil.

“Ao proteger a criança de todos os riscos e acidentes naturais, não as permitindo usar a imaginação e ter contato com a natureza, corremos o risco de ter crianças paralisadas e assustadas”, agrega Iben. “A criança não será forçada a subir árvores antes que esteja pronta, e tampouco usará uma faca sem orientação. Elas serão ensinadas e aprenderão fazendo”.

Tema de filme – Daniel e Aimie Stilling são um casal de cineastas dinamarqueses e hoje vivem em Orlando, nos Estados Unidos.

Há três anos, eles decidiram passar alguns meses na Dinamarca e, na ocasião, sua filha Bella, na época com 4 anos, frequentou um jardim de infância florestal.

Ambos admitem terem ficado inseguros, de início, com as atividades. Mas a partir da experiência que consideraram positiva, surgiu a ideia de um documentário sobre o tema, que acaba de ser lançado e deverá ser exibido em TVs de diferentes países.

Com Daniel na direção e Aimie na produção, o filme Nature Play mostra o dia a dia e a metodologia por trás dessas escolas. É ainda um contraponto crítico ao sistema de ensino americano, que dá ênfase à aplicação de testes padronizados, um modelo que vem sendo questionado por educadores e pais.

“As crianças aqui nos Estados Unidos não conseguem brincar porque passam horas fazendo lições de casa e estudando para provas”, critica Daniel Stilling, que ao voltar aos EUA decidiu manter o “espírito”, como descreve, da educação que Belle recebeu no jardim florestal.

“Ela é com certeza menos estressada que seus colegas, está sempre sorrindo, cantarolando, tem um ótimo controle físico e capacidade de reter informações”, exemplifica Daniel, que durante a entrevista mostra com a câmera do computador o quintal de sua casa, todo equipado com jogos e equipamentos infantis. “Passamos boa parte do tempo aqui fora ou no bosque perto de casa.”

‘Motivador’
– Se por um lado o sistema provoca reações de surpresa em muitos, por outro é valorizado no país.

“O que chamamos de escolas ao ar livre é uma ótima maneira de aprender vários temas diferentes e de brincar durante o aprendizado, então é muito motivador”, defende, em entrevista ao documentário, a então ministra da Educação da Dinamarca, Christine Antorini, que ocupou o cargo de de 2011 a 2015.

Jardins de infância florestais seguem o mesmo enquadramento jurídico que os tradicionais e têm que apresentar um plano de como garantirão que as crianças sejam estimuladas a determinadas habilidades, como linguagem, desenvolvimento motor, etc.

Prefeitura e conselhos locais são responsáveis pelo financiamento e pela fiscalização de que as instituições cumpram as normas. De acordo com a prefeitura de Copenhague, há inspeções anuais.

Um terço dos custos é pago pelos pais, e o restante, pelo conselho local. Os valores são os mesmos de um jardim de infância tradicional. No caso da capital, varia de 1,5 mil a 3,5 mil coroas dinamarquesas (cerca de R$ 790 e R$ 1.800), dependendo da opção por horário parcial ou integral, além de inclusão ou não da alimentação.

Na Dinamarca, famílias com crianças pequenas ainda têm direito a um auxílio financeiro extra do governo, que pode ser usado para abater o custo da escola. (Fonte: G1)