Há aproximadamente 130 espécies de plantas carnívoras no Brasil presentes em praticamente todos os biomas. Para compreender como se desenrolou a dinâmica evolutiva desse grupo tão fascinante de plantas, uma condição necessária é o estudo de seu DNA. Mas nenhuma dessas espécies brasileiras tinha tido o seu genoma completo sequenciado.
Isso começa a mudar a partir do trabalho de um grupo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que está elaborando o primeiro sequenciamento genômico total (cloroplasto, mitocôndria e nuclear) de uma planta carnívora brasileira, a Utricularia reniformis, endêmica do Brasil.
Os primeiros resultados, com a publicação do plastoma – o genoma presente nas organelas chamadas cloroplastos (cpDNA) – foram publicados em 2016. Um segundo estudo, com o genoma mitocondrial (mtDNA), acaba de sair na mesma revista PLOS ONE. O próximo passo é a publicação do genoma nuclear (nDNA), em andamento.
A pesquisa é liderada pelo bioinformata Alessandro de Mello Varani e pelo biólogo Vitor Fernandes Oliveira Miranda, ambos da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias de Unesp de Jaboticabal, e conta com apoio da FAPESP.
As mais de 120 espécies de plantas carnívoras identificadas até o momento no Brasil não descendem de um ancestral comum. A carnivoria nas plantas evoluiu de forma independente em mais ou menos nove ocasiões diferentes, em cinco ordens diferentes de angiospermas.
A ordem com o maior número de plantas carnívoras é Lamiales, a mesma de plantas como lavanda, lilás, jasmim e boca-de-leão, além de outras de uso culinário como oliveira, gergelim, menta, manjericão, sálvia e alecrim.
Dentro da ordem Lamiales, a família com mais espécies carnívoras (370) é a das lentibulariáceas, sendo que cerca de 230 espécies pertencem ao gênero Utricularia, que reúne plantas aquáticas e terrestres. A Utricularia reniformis é uma planta terrestre, que cresce em locais úmidos da Mata Atlântica.
O método utilizado pela U. reniformis para capturar suas presas é uma bolsinha chamada utrículo. Em seu interior há um fluido que serve para digerir os microcrustáceos que porventura por ela sejam sugados. Uma vez presos, não há escapatória. A presa morre e seus tecidos são digeridos e absorvidos pela planta carnívora.
Só que tudo isso ocorre em uma dimensão invisível ao olho humano. “Os utrículos são muito pequenos e só é possível analisá-los em detalhe no microscópio”, disse Varani.
“Estima-se que os menores genomas de plantas sejam os de algumas espécies de lentibulariáceas. O genoma nuclear (nDNA) dos animais são mais conservados, isto é, variam muito pouco entre espécies de um mesmo gênero, ou de uma mesma família, quando comparados a genomas de plantas”, disse.
Humanos e chimpanzés, por exemplo, têm diferença em apenas 1,5% do genoma nuclear. No caso do DNA nuclear das plantas de uma mesma espécie, porém provenientes de diferentes populações, a diferença pode ser muito grande.
“Eles variam enormemente dentro de um mesmo gênero e até mesmo entre diferentes indivíduos de uma mesma espécie. Entre as lentibulariáceas, por exemplo, o tamanho do DNA nuclear pode variar de 61 milhões a 1.600 milhões de bases (nucleotídeos) dentro da mesma família. Há espécies de lentibulariáceas com genomas 25 vezes menores do que outras. Portanto, as lentibulariáceas são excelentes candidatas para estudos de contração e expansão genômica”, disse Varani.
Além do genoma de plantas de um mesmo gênero ou espécie variar em tamanho, a ordem em que os genes estão dispostos nas cadeias helicoidais de DNA também muda. É como pegar os milhões de nucleotídeos do DNA nuclear de uma planta, colocar em um liquidificador, misturar em uma nova sequência e o DNA resultante permanecer funcional, e da mesma espécie.
“Genoma de planta flutua no tamanho e na ordem de disposição das bases nos cromossomos. Devido a este fato, trabalhar com genoma nuclear de plantas, do ponto de vista bioinformático, é uma tarefa desafiadora”, disse Varani.
Complicado mas possível graças ao avanço das técnicas de sequenciamento e, principalmente, da bioinformática, a ferramenta computacional usada para classificar e comparar as dezenas de bases de cada genoma. O desafio é determinar quais porções do genoma correspondem a genes funcionais.
“É preciso determinar onde começa a sequência de bases de um determinado gene e onde ela termina e descobrir, entre cadeias de DNA diferentes extraídas de membros de uma mesma espécie, quais são os genes inerentes àquela espécie. No caso específico, é preciso descobrir quais genes são os que determinam a planta carnívora U. reniformis”, disse Varani.
DNA do cloroplasto – Um fator que diferencia sobremaneira a carga hereditária completa das plantas é que, além do DNA nuclear e do DNA mitocondrial (mtDNA), aquele que existe dentro das mitocôndrias (nos animais e nas plantas), essas últimas têm um terceiro reservatório genético que não existe nos animais. Trata-se do DNA do cloroplasto (cpDNA), ou plastoma, a organela responsável pela fotossíntese.
A teoria simbiótica diz que organelas como mitocôndria e cloroplasto são herança de antigos microrganismos que há bilhões de anos, na era Proterozoica, invadiram ou foram absorvidos por bactérias maiores. Em vez de uma destruir a outra, ou vice-versa, estabeleceu-se uma relação simbiótica onde o ancestral bacteriano de mitocôndrias e o de cloroplastos passaram a desenvolver no metabolismo do hospedeiro o papel fundamental da geração de energia. Energia dos alimentos, no caso da mitocôndria, e energia solar, no caso dos cloroplastos.
Como, em um passado longínquo, mitocôndrias e cloroplastos foram seres microscópicos independentes, essas organelas preservam em seu interior sequências de DNA que descendem diretamente do DNA daqueles pequenos invasores proterozoicos.
Quando se fala em obter o genoma completo de uma planta, o que se pretende é sequenciar três DNAs: o DNA nuclear (nDNA) com dezenas de milhões de bases, o DNA mitocondrial (mtDNA) e o DNA do cloroplasto (cpDNA), com apenas alguns milhares de bases cada um.
“Em termos de dificuldade, sequenciar o DNA do cloroplasto foi mais fácil. Descobrimos muitos pontos interessantes, como o fato de que muitos dos genes do cloroplasto em U. reniformis, que regulam a fotossíntese, estavam deletados. Haviam sido apagados do cpDNA. Um achado interessante, uma vez que esses mesmos genes encontram-se intactos em espécies de habitat aquático”, disse Varani.
“Plantas carnívoras fazem fotossíntese. Porém, a carnivoria também é uma forma de obtenção de nutrientes. A perda daqueles genes talvez tenha a ver com a adaptação à carnivoria e ao habitat terrestre da planta, mas é algo que ainda não sabemos”, disse. A novidade que veio do sequenciamento do DNA mitocondrial foi descobrir que parte daqueles genes apagados no cloroplasto foi transferida e religada na mitocôndria. Porém esses genes aparentemente não se encontram funcionais no mtDNA.
“Estamos agora estudando a transferência gênica entre estas organelas e tentando entender esse processo sob o ponto de vista evolutivo. Comparamos o cpDNA e o mtDNA de U. reniformis com os genomas das organelas de outras espécies de habitat terrestre do gênero e constatamos a tendência de perda dos genes do cpDNA e transferência dos mesmos para o mtDNA em todas elas. O interessante é que essa tendência aparentemente não ocorre em espécies de habitat aquático, sugerindo que as lentibulariáceas também possam ser utilizadas como modelo para o estudo sobre como plantas adaptaram-se a habitats aquáticos”, disse Varani. (Fonte: Agência FAPESP)