O que pode detonar uma epidemia urbana de febre amarela

Por enquanto, o Brasil só vem registrando casos de contaminação por mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, que são silvestres – ou seja, vivem em florestas. Ao longo de 2017, foram confirmados 779 casos de febre amarela, 262 deles resultando em mortes.

O surto poderia ser muito mais mortal se pessoas estivessem sendo infectadas dentro de centros urbanos, não apenas em áreas de parques e florestas. Mas nesta semana, um caso de infecção em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, acendeu um sinal de alerta.

A prefeitura informou que um homem de 35 anos teria sido contaminado na cidade, e não em área de mata. Mas o Ministério da Saúde esclareceu, depois, que o paciente trabalharia em uma área rural, embora morasse em bairro urbano. E que testes precisariam ser feitos para verificar se, de fato, ele foi infectado pelo Aedes aegypti. A pasta disse considerar “baixíssima” a possibilidade de haver infecção urbana.

Diante desse cenário, a BBC Brasil conversou com especialistas para saber o que poderia causar um surto de febre amarela nas cidades do país. A falta de controle do Aedes e uma série de fatores seriam necessários para que isso ocorresse.

Como saber se a contaminação foi ‘silvestre’ ou ‘urbana’?

Uma das diferenças centrais entre a febre amarela urbana e a silvestre está nos mosquitos que transmitem o vírus em cada ambiente.

Enquanto nas florestas insetos dos gêneros Haemagoguse Sabethesdisseminam a doença, nas cidades o Aedes aegypti, vetor da dengue, zika e chikungunya, é a espécie com potencial de transmissão do vírus.

Vale lembrar que os mosquitos silvestres têm predileção por sangue de macacos e o Aedes, pelo humano – essas preferências vem de milhões de anos de evolução e adaptação genética desses dois tipos de inseto.

De acordo com pesquisador Ricardo Lourenço, chefe do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do Instituto Oswaldo Cruz, será necessário fazer três tipos de investigação para determinar se o homem de São Bernardo do Campo foi infectado pelo mosquito Aedes aegypti:

– Mapear a rotina do paciente, para saber se ele passou por zonas onde existe a presença de mosquitos silvestres, de macacos ou de outras pessoas infectadas. É o que os infectologistas chamam de investigação epidemiológica.

– Detectar o momento exato de apresentação dos primeiros sintomas, para estimar o momento em que houve a contaminação pela picada do mosquito.

– Coletar e examinar mosquitos que habitam as áreas por onde o homem infectado passou, para verificar quais espécies apresentam o vírus – a chamada investigação “entomológica”.

A partir dessas análises seria possível, segundo Lourenço, identificar se mosquitos silvestres ou urbanos infectaram o paciente.

O que seria necessário para um Aedes aegypti se infectar e transmitir febre amarela?

Segundo o pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, alguns fatores combinados precisam estar presentes para que o Aedes aegypti passe a transmitir febre amarela nas cidades.

Primeiro, seria preciso que uma pessoa infectada com alta concentração do vírus no sangue entrasse em uma área com grande infestação de Aedes aegypti. É importante lembrar que um mosquito não necessariamente é infectado ao picar uma pessoa doente, ou contrai uma quantidade suficiente do vírus para passá-lo adiante.

E, para que o vírus se propague a ponto de causar um surto urbano, os Aedes infectados por essa primeira pessoa teriam que estar próximos a populações humanas vulneráveis a ele, ou seja, que não tenham tomado a vacina.

Após ser picado, o ser humano só mantém o vírus em concentração suficiente para infectar mosquitos por dois ou três dias, diz Lourenço.

Uma pesquisa do Instituto Oswaldo Cruz mediu a capacidade do Aedes aegypti de transmitir o vírus da febre amarela. Para realizar os testes, os pesquisadores coletaram ovos dos mosquitos nas cidades e em áreas de mata do Rio de Janeiro, Manaus e Goiânia. O estudo mostrou que ele é capaz de passar a doença, mas sua eficiência como vetor varia de acordo com a população de insetos.

Os Aedes aegypti do Rio de Janeiro apresentaram o maior potencial de disseminar a febre amarela, com 10% dos mosquitos apresentando partículas do vírus na saliva 14 dias após a alimentação por sangue infectado. Ou seja, pelo estudo, a cada 100 mosquitos que picassem uma pessoa infectada, 10 se contaminariam.

Daí a necessidade de vários fatores combinados para a disseminação em meio urbano, como quantidade suficiente de vírus no sangue do ser humano infectado e presença de muitos Aedes para picar esse ser humano e retransmitir a doença no meio urbano.

Ainda assim, a capacidade de transmissão do vírus pelos mosquitos urbanos verificada na pesquisa é considerada preocupante pelos pesquisadores.

“Os dados apontaram que os insetos fluminenses das espécies Aedes aegypti são altamente suscetíveis a linhagens virais no Brasil. A competência vetorial dos mosquitos Aedes também foi verificada em Manaus e, em menor grau, em Goiânia. O achado reforça a importância de medidas preventivas, como a vacinação e o controle do Aedes aegypti“, diz Lourenço.

Os mosquitos silvestres têm capacidade muito maior de transmitir a febre amarela. Segundo o estudo do Instituto Oswaldo Cruz, o percentual de Haemagogus do Rio de Janeiro infectados chegou a 20%. Entre os Sabethes locais, esse percentual alcançou 31%.

Controle da população de Aedes é essencial

O professor Aloisio Falqueto, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), diz que a população de mosquito Aedes aegypti existente hoje no Brasil ainda é, por enquanto, considerada pequena para ser capaz de provocar uma epidemia de febre amarela urbana.

Segundo ele, em períodos de chuvas e calor- ambiente mais propício para proliferação de mosquitos -, a existência de focos de Aedes alcança até 5% das casas brasileiras. Na África, onde há epidemia de febre amarela urbana, esse percentual varia de 20% a 40%.

“Se tivesse uma densidade grande de Aedes no Brasil, existiria a condição de disseminar a doença na cidade. Por enquanto, a densidade baixa do mosquito não permitiu que a doença se disseminasse.”

Falqueto destaca, porém, que é preciso manter ações de combate ao mosquito para evitar que o risco de epidemia urbana aumente.

“No Brasil, raramente chegamos a ter 5% das casas com foco de Aedes. Mas esse já seria um nível crítico. A partir daí a gente teria que se preocupar com o vírus em transmissão urbana.”

O Ministério da Saúde diz que é “baixa” essa possibilidade de transmissão. De acordo com a pasta, as ações de vigilância com captura de mosquitos urbanos e silvestres não encontraram, até o momento, presença do vírus no Aedes.

“Já há um programa nacionalmente estabelecido de controle do Aedes aegypti em função de outras arboviroses (dengue, zika, chikungunya), que consegue manter níveis de infestação abaixo daquilo que os estudos consideram necessário para sustentar uma transmissão urbana de febre amarela”, disse a pasta, em nota.

“Além disso, há boas coberturas vacinais nas áreas de recomendação de vacina e uma vigilância muito sensível para detectar precocemente a circulação do vírus em novas áreas para adotar a vacinação oportunamente.”

Medidas de prevenção

Como o tamanho da população de Aedes aegypti determina o risco de contaminação por febre amarela, os pesquisadores ressaltam que é essencial a participação da população para prevenir o aumento do número de mosquitos nas cidades e nos quintais de casas perto de matas.

“Com esse numero de casos de febre amarela pipocando, se por alguma razão as densidades de Aedes aumentarem, o risco de febre amarela urbana aumentará de maneira assustadora”, diz o médico infectologista Eduardo Massad, professor da Universidade de São Paulo (USP).

É preciso estar atento ao acúmulo de água parada em garrafas, pratos de plantas e outros objetos deixados em jardins e varandas, assim como fazer a manutenção de calhas e manter caixas d’água e outros depósitos vedados.

Os especialistas do Instituto Oswaldo Cruz também recomendam que o Brasil considere exigir a imunização de pessoas vindas de países que são alvo de febre amarela, sobretudo da África, onde há a doença em centros urbanos. O país já exige Certificado Internacional de Vacinação a pessoas vindas de Angola e da República Democrática do Congo.

Além disso, vacinar populações de áreas de risco é essencial para evitar a proliferação da doença, segundo os pesquisadores.

“Eliminar os criadouros e controlar a proliferação do Aedes aegypti é uma medida importante para evitar a reemergência da febre amarela urbana no Brasil, além da questão básica e já amplamente conhecida de ele ser também responsável pela transmissão dos vírus da dengue, zika e chikungunya”, diz Dinair Couto Lima, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz e uma das autoras da pesquisa sobre mosquitos transmissores.

Fonte: BBC