Conservar a natureza, tirar partido dos recursos

Não é uma descoberta recente. A oferta turística cabo-verdiana não se resume a sol, praia, resortsall inclusive. Apesar de pequeno, o país tem uma grande diversidade paisagística, que se reflecte na possibilidade de agradar a diferentes públicos. Ao longo dos anos, as sucessivas tutelas têm realçado essas muitas possibilidades e, com maior ou menor competência, promovido o Cabo Verde plural. Nesta equação cabe um destino menos provável: Santa Luzia.

Reserva natural, classificada desde 2003, formada, além da ilha principal, pelos ilhéus Branco e Raso, Santa Luzia tem potencial turístico por explorar. Pelo menos, é essa a convicção de quem conhece de perto cada recanto de um verdadeiro paraíso na terra.

Poucos saberão tão bem do que falam como Tommy Melo, presidente da Biosfera I, organização não-governamental ligada à protecção ambiental, com sede em São Vicente, e que desde 2006 desenvolve actividades de conservação do ecossistema de Santa Luzia e seus ilhéus.

“Se um dia ganhasse, pelo menos, uns três Euromilhões pediria para comprar a reserva, fechava aquilo e deixava que ficasse um paraíso edílico para sempre. É isso que os conservacionistas sempre querem. Só que isso não é possível de acontecer e nem é desejável, do ponto de vista social. As pessoas precisam de conhecer aquilo que querem proteger. Portanto, acho que sim. É preciso e deixará falta, sim, implementar actividades turísticas, não só para os cabo-verdianos, como para estrangeiros que queiram conhecer a riqueza daquilo que é a maior reserva natural do país”, comenta.

Para que se passe da teoria à prática, é necessário que tudo esteja enquadrado, planeado, previsto. A reserva apresenta um ecossistema frágil, com espécies endémicas e outras de alto valor ecológico, sujeitas a múltiplas ameaças.

O plano de gestão da reserva de Santa Luzia, elaborado há alguns anos sujeito a alterações ao longo do tempo – e à espera de aprovação, para ganhar força legal, torna-se um documento central. Sem ele, não só os esforços de conservação da biodiversidade ficam condicionados, como o aproveitamento económico do destino, pela via do turismo, e actividades indirectas por ele geradas, torna-se praticamente impossível.

“Muitas das actividades que estão contempladas neste plano de gestão já vêm sendo implementadas pela Biosfera, juntamente com os seus parceiros nacionais e internacionais. Por exemplo, toda a conservação de aves marinhas, das tartarugas, os vários estudos científicos que são feitos em parceria com universidades estrangeiras e nacionais, tudo isso de forma a tentar antecipar um bocadinho a aprovação do plano de gestão, refere Tommy Melo.

“Obviamente, o plano de gestão é uma ferramenta muito importante, porque irá guiar partes muito importantes da conservação da reserva, nomeadamente, a fiscalização e implementação de actividades de turismo”, acrescenta.

Zoneamento

A exploração turística de zonas classificadas como reservas naturais não é uma novidade, sequer é algo raro. Pelo contrário, tem sido uma opção assumida internacionalmente por quem gere estas áreas, com diferentes objectivos.

Desde logo, permite envolver as comunidades locais na vida da própria reserva, centrando a atenção na preservação. Por outro lado, garante a criação de riqueza que, além de agradar ao Estado (que não rejeita uma fonte de rendimento), ajuda a financiar os próprios esforços de conservação e a dinamizar a economia.

No plano de gestão de Santa Luzia avançou-se para uma solução de zoneamento, ou seja, para a definição de áreas com diferentes tipos de classificações, a que correspondem diferentes tipos de actividades permitidas. Ou seja, não se proíbe a pesca tradicional, não se proíbem os desportos náuticos, não se proíbem outros tipos de actividades turísticas. Apenas se estabelecem zonas próprias para o efeito, para que Natureza, comunidades, economia e Estado saiam todos a ganhar.

“Neste momento, 90% ou mais dos pescadores que utilizam a reserva para pescar, utilizam-na com o seu saber e utilizam artes de pescas tradicionais e essas comunidades estão muitíssimo chateadas com aqueles outros 10% que cometem infracções, que utilizam artes de pesca que servem pura e simplesmente para degradar”, exemplifica o presidente da Biosfera.

Professor da Universidade de Cabo Verde, o biólogo marinho Rui Freitas subscreve a ideia de uma reserva também virada para o turismo. O investigador fala-nos da possibilidade de se trabalhar economicamente a área protegida, sem que com isso se comprometa o equilíbrio ambiental.

“Os turistas que visitam estes sítios de forma organizada já estão informados dos procedimentos, por exemplo, por onde andar. Obviamente, terão sempre um guia treinado e não se pode fugir a uma série de regras. No caso de Santa Luzia, penso que terão que desenvolver trilhos próprios para a movimentação humana”, explica.

“A Madeira é extraordinária nesse sentido. Com o ganho que tiveram com o turismo nas áreas protegidas, conseguem provar que se ganha mais, do ponto de vista de rendimento, tendo uma área protegida, do que não tendo essa classificação”, ilustra.

Nem de propósito, Paulo Oliveira, vice-presidente do Instituto de Conservação da Natureza da Madeira (ICNM) tem trabalhado nas chamadas desertas, um conjunto de ilhas não habitadas, pertencentes ao arquipélago da Madeira, e que têm também, à semelhança de Santa Luzia, uma riqueza natural significativa. São precisos cuidados, sim, mas é possível conciliar interesses.

“Durante muito tempo era um tema tabu. Era quase como se fossem coisas inconciliáveis. Ou a área protegida existia ou existia o turismo. Hoje em dia, temos uma maneira de ver completamente diferente. Acho que há aqui um processo demorado de consolidação das áreas protegidas. Quando uma área protegida é criada e começa-se o seu processo de implementação e a sua gestão, não podemos logo pensar em ter ali um turismo consolidado. Há que, primeiro, consolidar aquilo que é a gestão e consolidação da área protegida e, aos poucos, de acordo com a resposta do público, dos stakeholders, ir criando esse segmento, como um dos factores importantes a desenvolver”, defende.

As Ilhas Desertas estão classificadas como Zona Especial de Conservação e Zona de Protecção Especial. Em 2016, dados do ICNM, cerca de 5.000 pessoas visitaram as Desertas, distribuídas pelas seis empresas que organizam as viagens àquela reserva natural.

Da sua experiência no terreno, Paulo Oliveira considera que, de uma maneira geral, o comportamento do turista está adequado à singularidade da experiência que lhe é oferecida. Em caso de incumprimento, há responsabilização, não só de quem prevarica, como da própria agência que ofereceu o serviço.

“Todas as embarcações que levam pessoas às Desertas têm a bordo um skipper ou uma segunda pessoa que tiveram formação dada por nós, que durante a viagem explicam o que é que as pessoas vão encontrar, o que podem e não podem fazer. Se o turista se porta mal, não é o turista que é penalizado, é a empresa e o skipper”, nota.

Possibilidades

O perfil do turista de natureza é habitualmente distinto daquele que procura o all inclusive. A literatura científica identifica o público-alvo como alguém que, vivendo durante o ano em zonas urbanas, ocupa o tempo livre com actividades no exterior. Nalguns casos, este tipo de turista está mesmo disponível para viajar longas distâncias ao encontro de algo muito específico como uma ave, um peixe, uma planta. Espera uma experiência cultural forte, de interacção com a comunidade local, sem deixar de ser exigente com a qualidade do destino e dos serviços prestados.

O biólogo Pedro Geraldes, da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), exemplifica.

“No caso concreto das aves, Santa Luzia tem a Cagarra de Cabo Verde – o Raso e o Branco têm das maiores colónias que existem em todo o arquipélago. A Calhandra do Raso, no mundo inteiro, só existe no Raso e é uma das espécies mais raras do mundo. Há pessoas que gastam milhares de euros só para irem ver esta espécie e acrescentá-la à sua lista. Não temos ideia, mas há pessoas de países como Inglaterra, Suécia, EUA que viajam o mundo inteiro para fazer uma colecção de uma espécie nova. Gastam muito dinheiro para ver essas espécies, porque atribuem-lhes mais valor do que nós mesmos, que as vemos todos os dias”.

Além da observação de pássaros, as possibilidades são várias. Sem esforço, Tommy Melo identifica actividades que poderão vir a ser desenvolvidas.

“Do que eu conheço e já conheci de outras partes do mundo, com algum tipo de exploração a esse nível, imagino [em Santa Luzia] o turismo vocacionado para actividades marinhas, como mergulho recreativo bem regulamentado, observação de tartarugas, observação de cetáceos. Em certas épocas do ano, o turismo de estrelas, o campismo selvagem, em que o turista poderá comprar o peixe directamente dos pescadores artesanais, bem como o trekking, já praticado noutras ilhas”, lista o presidente da Biosfera I.

Qualificar Santa Luzia enquanto destino turístico, sem colocar em causa o frágil ecossistema, com todas as suas especificidades, obrigará a um trabalho conjunto de diferentes actores, cujo balizamento e linhas orientadoras dependem do Estado e das autoridades ligadas ao ambiente. Mais uma vez, a implementação de um plano de gestão é fundamental, para que se avance em qualquer uma das direcções possíveis.

Para esta reportagem, realizada em conjunto com a Rádio Morabeza, tentámos chegar à fala com a Direcção Nacional do Ambiente (DNA) e com a directora da Reserva de Santa Luzia. Na DNA foi-nos pedido que enviássemos um email, o que fizemos, e ao qual não obtivemos resposta. A directora da reserva escusou-se a dar entrevista, por não estar autorizada a falar.

Fonte: Expresso das Ilhas