Foi agarrada pelo zoólogo paulistano Ivan Prates, um dos 12 pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) a integrar a primeira grande expedição científica a uma das regiões mais remotas da Amazônia, no último mês de novembro.
“Não tenho ideia do que seja”, disse Prates, enquanto exibia o bicho aos colegas, igualmente intrigados com os olhos brilhantes em tons de azul, verde e laranja.
Conforme escurecia e a temperatura despencava no platô, os pesquisadores torciam por novos encontros como aquele.
E nossa equipe, que produzia um documentário sobre a expedição – lançado no último dia 14 pela BBC World News – rezava para que a fria garoa desse uma trégua e nosso cinegrafista conseguisse registrar os encontros sem ser importunado por vespas, percalços enfrentados nos primeiros dias de gravação.
Image captionSubida ao platô onde fica o Pico da Neblina ocorreu em helicóptero do Exército
Sonho concretizado
Há muitos anos a equipe liderada pelo professor Miguel Trefaut Rodrigues, um dos maiores especialistas em répteis e anfíbios do mundo, sonhava em viajar ao Parque Nacional do Pico da Neblina para catalogar as espécies que ali vivem.
O grupo esperava encontrar animais e plantas jamais registrados pela ciência e preencher importantes lacunas na história da formação da Amazônia, bioma com a maior diversidade de espécies do mundo. Também pretendia estudar como a região do pico pode ser afetada pelas mudanças climáticas e quais espécies estão mais sujeitas a desaparecer.
Após um ano de preparativos feitos numa parceria inédita com o Exército, a expedição finalmente rendia frutos.
A perereca amarela capturada pelos pesquisadores era uma Myersohyla Chamaleo, anfíbio até então jamais encontrado no território brasileiro.
Em um mês de expedição, foram coletadas mais de mil amostras de plantas, anfíbios, aves e pequenos mamíferos – material que propiciará vários anos de estudos e enriquecerá as coleções nacionais de botânica e zoologia.
Parceria com o Exército
Tirar a expedição do papel, porém, não foi simples.
O Parque Nacional do Pico da Neblina está fechado a visitantes desde 2013, quando o turismo desordenado ameaçava gerar conflitos na região.
Image captionMyersohyla Chamaleo, espécie encontrada pela primeira vez no território brasileiro
Para pesquisar na área, foram necessárias autorizações do ICMBio (órgão que administra os parques federais) e da Funai (Fundação Nacional do Índio), pois boa parte do parque se sobrepõe à Terra Indígena Yanomami.
Biólogos da USP já haviam tentado trabalhar lá, mas dizem que a Funai sempre negou os pedidos. Outra dificuldade era chegar a uma região de mata fechada e desprovida de estradas, na fronteira do Brasil com a Venezuela. A saída foi buscar uma parceria com o Exército, que mantém uma base dentro do território yanomami, a alguns dias de caminhada do Pico da Neblina.
Após a USP procurar em janeiro de 2017 o general Sinclair James Mayer, chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército, a força resolveu abraçar a missão. A partir dali, todas as portas se abriram: a Funai – hoje presidida por um general, Franklimberg Ribeiro de Freitas – concedeu a licença aos pesquisadores, e o Exército assumiu toda a logística da viagem, inclusive o transporte.
Acordou-se que os biólogos voariam de São Gabriel da Cachoeira (AM) até o 5º Pelotão Especial de Fronteira, em Maturacá, onde passariam duas semanas hospedados em alojamentos militares, e depois subiriam de helicóptero até um acampamento na base do pico, a dois mil metros de altitude e a mil metros do cume. Nossa equipe os acompanharia por dez dias.
Banquete na aldeia
Só faltava combinar com os donos do pedaço, os yanomami.
Após a chegada a Maturacá e um encontro tenso com os indígenas, mediado por um intérprete yanomami que parecia suavizar as falas mais críticas aos pesquisadores, a equipe recebeu sinal verde da comunidade e se comprometeu a contratar guias locais.
Image captionDezenas de militares do Exército cuidaram da logística da expedição
O clima só apaziguou de vez dias depois, com um convite para uma festa na aldeia Maturacá. A cerimônia, com centenas de pessoas, celebrava o retorno de dezenas de caçadores que haviam passado uma semana na mata e capturado porcos do mato, mutuns (um tipo de pássaro), um macaco e uma anta.
Com os corpos pintados de preto e penas de gavião na cabeça, os caçadores fizeram uma entrada triunfal na aldeia. Dançando e cantando, caminharam até uma grande estrutura de palha, onde os bichos estavam empilhados e moqueados.
Foram recebidos por mais de 20 xamãs, os líderes espirituais, que tinham os rostos pintados e penas de arara nos ombros. Alguns sopravam nas narinas dos outros paricá, um pó alucinógeno feito de plantas locais e que, segundo os xamãs, permite que se comuniquem com os xapiripë, espíritos de entidades cósmicas e criaturas da floresta.
Image captionPovo yanomami habita a região do Pico da Neblina, na divisa do Brasil com a Venezuela
Os pesquisadores assistiam ao transe dos xamãs, sentados em cadeiras escolares. “Tantos anos fazendo trabalho de campo e eu nunca vi um negócio desses”, exultava Trefaut enquanto filmava tudo com a câmera.
Ao final, quando os cientistas deixavam a aldeia, um ancião apontou para os óculos escuros de um pesquisador, que propôs trocá-lo pelas flechas do interlocutor. Negócio fechado, o velho pôs os óculos e posou para fotos com os visitantes.
Ataque de vespa
A contratação dos guias se mostrou crucial para os pesquisadores. Grandes conhecedores da floresta, foram eles que indicaram as trilhas mais produtivas e encontraram vários dos animais coletados – entre os quais uma bela jiboia verde, serpente não venenosa.
As buscas mais profícuas ocorriam à noite. Aos 65 anos, o professor Trefaut exibia perícia e disposição surpreendentes. Era capaz de identificar sapos pelo canto a longas distâncias e os rastreava mata adentro – às vezes cruzando pântanos e riachos com a água na cintura – até capturá-los com as próprias mãos.
Image captionPrimeira etapa da expedição ocorreu em matas densas da região de Maturacá
Alguns eram tão pequenos quanto moedas e se escondiam entre raízes, fazendo com que ele levasse o ouvido ao chão e revirasse a terra à sua procura. Certa vez, ficou quase uma hora no encalço de um e só desistiu porque passava das onze da noite.
Em outra noite, logo após uma tempestade, Trefaut foi ferroado na pálpebra por uma vespa – talvez a mesma que, momentos antes, entrou na cobertura de plástico que protegia a câmera do nosso cinegrafista, fazendo com que fugisse em disparada.
Após a ferroada, Trefaut praguejou, jogou água no rosto e, ainda com os olhos inchados, continuou as buscas.
A recompensa veio momentos depois: “Uma pipa, uma pipa!”, ele gritou ao encontrar numa poça um tipo raro de sapo aquático com corpo achatado e olhos minúsculos, a Pipa surinamensis. Antes que o bicho sumisse na lama, o zoólogo Agustín Camacho o agarrou.
Outros pontos altos da expedição foram a coleta de sapos no topo do pico, quando nossa equipe já tinha deixado o acampamento, e a captura de lagartos da família Anolis – que não têm qualquer parentesco com espécies amazônicas, mas sim com espécies dos Andes e da Mata Atlântica.
“Temos um quebra-cabeça para montar e explicar como esses bichos se mantiveram completamente isolados nessa pequena porção da América do Sul”, diz Trefaut. Uma das hipóteses é que, no passado, houve platôs que serviam como corredores para espécies de altitude, conectando diferentes biomas da América do Sul.
Os lagartos e outros bichos capturados passaram por um exame conduzido pelo zoólogo Agustín Camacho, que mediu sua tolerância à variação de temperatura. Os dados, que permitirão identificar quais espécies locais estão mais vulneráveis às mudanças climáticas, ainda estão sendo processados.
Image captionO Pico da Neblina, a 2.994 metros acima do nível do mar, visto do acampamento dos pesquisadores
Entre os resultados da expedição, houve ainda a captura de quatro espécies novas de sapos, dois lagartos, uma coruja e um arbusto – espécies novas, vale dizer, para a ciência ocidental, mas não para os yanomami, que diziam conhecer cada animal capturado, embora nem todos tivessem nomes específicos em sua língua.
Sacrifício em nome da ciência
Os guias tinham acesso livre ao laboratório improvisado onde os animais eram armazenados – e, diferentemente de nossa equipe, não pareceram se chocar ao conhecer a instalação.
Dezenas de aves coloridas já mortas, com vísceras e olhos extraídos, secavam ao sol sobre painéis. Numa mesa ao centro, os pesquisadores sacrificavam com injeções pequenos marsupiais, roedores, anfíbios e répteis. Em seguida, extraíam tecidos para exames genéticos futuros.
“Ninguém fica feliz e sorrindo quando tem de coletar um animal”, contou-me o professor Luís Fábio Silveira, um dos integrantes da expedição e curador de ornitologia do Museu de Zoologia da USP. Ele diz que matar os animais é importante para estudar sua genética e fisiologia – além de permitir que os bichos sejam incorporados a coleções.
“Pegamos poucos indivíduos de cada espécie, uma amostragem que não causa impactos significativos. E, depois que montamos uma coleção, ganhamos elementos importantes para justificar que uma área seja preservada, então os ganhos compensam”, afirma.
Image captionAncião que trocou óculos escuros por flechas com um dos pesquisadores
Silveira diz que o sacrifício dos bichos segue diretrizes éticas definidas por comitês internacionais. No caso das aves, costumam ser mortas com tiros de espingarda ou, quando capturadas por redes, têm ataques cardíacos induzidos. “Nós pressionamos o coração e, em um ou dois segundos, ela morre em nossas mãos. São métodos que provocam o menor sofrimento possível.”
O professor afirma que o material coletado renderá entre cinco e seis anos de pesquisas. “Os resultados foram além das minhas expectativas.”
Onde estão os bichos?
A expedição, porém, também gerou algumas descobertas negativas – e preocupantes.
A aposta dos yanomami no turismo para afastar ameaça de garimpo e ganhar autonomia
Na primeira etapa da viagem, quando analisavam a fauna nas matas baixas e densas da região de Maturacá, os pesquisadores quase não encontraram mamíferos – uma decepção para o professor Alexandre Reis Percequillo, especialista em roedores.
Poderia ser só má sorte, não fossem os relatos dos próprios yanomami, que disseram ter de se deslocar por distâncias cada vez maiores para caçar. Não por acaso, os caçadores tiveram de passar uma semana na mata antes de voltar à aldeia com as mãos cheias para o ritual presenciado pelos pesquisadores.
“Quando nossos pais saíam para caçar, às vezes a caça estava perto, mas a população cresceu muito e os bichos ficaram distantes”, contou a professora yanomami Maria Cleia Pereira.
Image captionProfessor Miguel Trefaut já descobriu cerca de 80 espécies em sua carreira
Dizimados por epidemias após terem seu território invadido por cerca de 40 mil garimpeiros nos anos 1980, os yanomami conseguiram reverter a queda demográfica. Hoje, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena, somam 23,5 mil integrantes no Amazonas e em Roraima – além de outros 11 mil na Venezuela.
Antes organizados em pequenos grupos dispersos pela floresta, muitos yanomami hoje vivem em aldeias populosas, onde a caça rareou e há maior dependência das trocas com o mundo exterior – caso da região de Maturacá.
Todos os meses, centenas de famílias yanomami daquela área se deslocam para São Gabriel da Cachoeira para fazer compras e receber o Bolsa Família, a principal fonte de recursos para a maioria das comunidades indígenas amazônicas.
Ouro como moeda
A invasão garimpeira deixou sequelas ambientais e sociais na região do Pico da Neblina – e jamais foi completamente erradicada.
Na base do pico, acampamos num antigo ponto de garimpo conhecido como Bacia do Gelo, onde a temperatura caía para menos de dez graus à noite. Naquela região, garimpeiros desviaram riachos e provocaram o surgimento de vários lagos.
Em muitos trechos, margens de cursos d’água foram reviradas, criando praias de pedregulhos sem qualquer vegetação.
Num encontro com a equipe da BBC antes da expedição, o general Omar Zendim, comandante da 2ª Brigada de Infantaria da Selva, disse que a região estava livre de garimpeiros há alguns anos.
Porém, numa clareira usada por garimpeiros perto da Bacia de Gelo, encontrei uma embalagem de comida fabricada em 2016 e com validade até julho de 2018, além de pilhas que pareciam ter sido descartadas recentemente.
Image captionRoedor capturado pelo biólogo Alexandre Percequillo
Em Maturacá, mulheres yanomami me contaram que garimpeiros têm oferecido 21 gramas de ouro (o equivalente a R$ 3 mil) a indígenas pelo transporte de alimentos até um garimpo do lado venezuelano da fronteira. O local fica a vários dias de caminhada de Maturacá – o percurso é feito todo a pé pela mesma trilha íngreme que dá acesso ao Pico da Neblina.
O ouro circula livremente pela região. Numa loja vizinha à base do Exército em Maturacá, clientes podem usar o metal como moeda, e há uma balança no balcão para pesá-lo.
Contaminação por mercúrio
O professor Miguel Trefaut diz que os danos causados pelo garimpo não prejudicaram a pesquisa, pois em boa parte da região visitada as matas estavam intactas. Mas ele afirma que o uso de mercúrio pelos garimpeiros pode ter gerado impactos graves – ainda que invisíveis – para a fauna e comunidades locais.
Em 2016, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) e a Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou altos índices de contaminação por mercúrio em aldeias yanomami próximas a garimpos em Roraima. Numa delas, a de Aracaçá, o índice de moradores com níveis perigosos de mercúrio no sangue chegou a 92%.
A substância pode causar problemas motores e neurológicos, perda de visão e danos permanentes em fetos. Não foram feitas medições em Maturacá.
Muitos indígenas da região disseram esperar que o turismo em pequena escala aumente a autonomia das comunidades e afaste o garimpo.
Chamado pelos yanomami de Yaripo, o Pico da Neblina deve ser reaberto à visitação nos próximos meses. Agora a atividade será gerida pelas próprias comunidades, e não mais por agências de turismo, modelo que estava gerando tensões nas comunidades.
Image captionAves sacrificadas e etiquetadas durante a expedição
Vários yanomami – inclusive os que acompanharam os pesquisadores – foram treinados nos últimos quatro anos para receber os turistas, em iniciativa apoiada pelo ISA, Funai, Exército e ICMBio.
Temporal no acampamento
Para seis guias, a expedição científica serviu como uma espécie de treino.
Apesar da boa relação com os pesquisadores, nem sempre as recomendações dos yanomami foram ouvidas. Quando a equipe chegou ao pé do pico, os guias alertaram sobre os riscos de erguer o acampamento na área definida pelo Exército, perto de um riacho.
Eles avisaram que o local era vulnerável a enchentes – informação descartada pelos militares – e preferiram atar suas redes numa gruta morro acima.
Dias depois, uma tempestade fez com que várias cataratas se formassem no topo do pico. Em instantes, o riacho encheu e inundou o acampamento, levando militares e pesquisadores a transferi-lo às pressas.
Na gruta dos yanomami, ninguém se molhou.
Fonte: BBC