Justiça e Congresso analisam mudanças no estatuto jurídico dos animais e da natureza

Um rio pode entrar na Justiça para defender-se da poluição? Pode um cão ter sua guarda compartilhada por um ex-casal? Essas são algumas das perguntas que o Judiciário e o Congresso terão de responder ao analisar ações e projetos de lei que podem revolucionar o estatuto jurídico de animais e da natureza no Brasil. Tendência fora do país, a mudança de tratamento na lei, na avaliação de seus defensores, amplia a proteção ambiental ao aproximar direitos de rios e animais, por exemplo, aos garantidos aos humanos.

Hoje, o Código Civil estabelece somente duas categorias jurídicas no país: pessoas e coisas. Pela legislação vigente, animais domésticos e silvestres se enquadram na segunda. A crítica a essa classificação é tema de ao menos dois projetos em tramitação no Congresso. Um deles, de autoria do deputado Ricardo Izar (PP-SP), foi aprovado na Câmara e aguarda análise do Senado. O texto estabelece regime jurídico especial a animais, que passariam a ser tratados como sujeitos de direitos despersonificados e sem deveres.

— É comprovado que o animal sofre, sente tristeza e alegria. A gente precisa reconhecer isso no mundo jurídico. Tudo muda. O animal passa a ter direito à vida, ao bem-estar. (A mudança de estatuto) é mais importante que mudar o Código Penal, que hoje tem penas brandas para maus-tratos. Vai ajudar a trazer a discussão de que animais têm direitos e abrir portas para novas mudanças na sua proteção — argumenta Izar.

Guarda compartilhada

Em 2017, Portugal passou a considerar animais “seres vivos dotados de sensibilidade”. A mesma alteração ocorreu em 2015 na França (leia mais abaixo).

Por aqui, o tema deverá ser discutido no Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas o debate se restringe aos animais domésticos. A Corte julgará se é possível conceder guarda compartilhada, como ocorre com crianças e adolescentes, e se um pet pertence ou não ao núcleo familiar. O caso corre em segredo de Justiça e foi adiado após um pedido de vista.

Para o professor de Direito Civil da Uerj Anderson Schreiber, a mudança no tratamento jurídico dado a animais pode trazer impacto profundo, já que relações não econômicas estabelecidas passariam a ser relevantes para o direito:

— Já temos um regime jurídico de proteção, mas, na medida em que se deixa de considerar um animal como objeto, você abre portas para situações que não eram consideradas danosas. A nossa proteção é focada em maus-tratos físicos, mas não trata dos efeitos sobre sentimentos, o impacto que não é físico, mas que pode afetar seu modo de vida.

Coordenador do Laboratório de Pesquisa em Direito Ambiental da UFRJ, Fábio de Oliveira avalia que o STJ até pode reconhecer que um animal faz parte do núcleo familiar e estabelecer guarda compartilhada, mas isso pode ser feito sem reconhecer que o cão ou gato é um sujeito de direito.

— O STJ parece indicar isso. Não diz que os animais são sujeitos de direito. Na minha opinião, deveria dizer.

A reivindicação pela alteração de estatuto jurídico hoje extrapola o mundo animal. Símbolo da maior tragédia ambiental do país, o Rio Doce pode se tornar o primeiro rio brasileiro reconhecido como sujeito de direito. A exemplo do Rio Atrato, na Colômbia, Ganges, na Índia, e Whanganui, na Nova Zelândia, a Justiça Federal de Belo Horizonte analisa se aceita ou não uma ação movida em novembro pela ONG Pachamama em que o próprio Rio Doce pede seu reconhecimento. Na prática, a ONG quer ajudar a prevenir novos desastres ambientais, como o provocado pelo rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG), e permitir, com a mudança no estatuto, que qualquer pessoa acione a Justiça se entender que houve violações de direitos da bacia do rio.

— O objetivo é tirar o ser humano do centro. Não precisamos que a natureza seja preservada para futuras gerações, mas porque ela própria tem o direito de ser sadia. Um rio tem o direito de estar limpo e correndo — defende Graziella Beck, da ONG Pachamama.

O advogado Lafayette Novaes, que ingressou com a ação, diz que o fundamento é simples: se o rio é um sujeito, então merece respeito independentemente dos interesses humanos. O raciocínio parte da existência de uma simbiose entre natureza e cultura que impede tratamento separado. No caso do Rio Doce, a relação fica clara com o povo Krenak, que vive em suas margens e para quem o rio é Uatu, seu avô.

— Ninguém respeita objetos. Você só respeita sujeitos, pessoas. É a grande falha da educação ambiental tentar ensinar a respeitar objetos — afirma.

Fábio de Oliveira argumenta que o debate, antes de ser jurídico, é filosófico, e que qualquer mudança esbarra na forma como os animais e a natureza são culturalmente percebidos. Para ele, a argumentação dos que defendem que animais, individualmente, deixem de ser considerados coisas é mais consistente do que a baseada na preservação de todo um ecossistema, como no caso dos rios, porque traça analogia entre animais e seres humanos:

— O ideal seria que essa mudança viesse por meio de lei, mas há alguns casos em que o próprio Judiciário poderia afirmar isso. Talvez o Judiciário tivesse que considerar o Código Civil inconstitucional, o que é muito difícil de acontecer.

Anderson Schreiber, da Uerj, destaca que os efeitos sobre a mudança de estatuto jurídico de rios são semelhantes aos dos animais, mas que entender que o meio ambiente tem direitos que independem das pessoas é culturalmente mais complexo:

— Quando você tem uma entidade coletiva, abstrata, fica mais difícil porque somos acostumados com o direito individual. É um passo além falar no direito de um rio. Entendo que isso aconteça em países que tenham uma cultura com maior influência indígena, onde há personificação da natureza. Para o Brasil, é um evento ainda distante por questões culturais.

— É uma quebra de pensamento. Começar essa luta pelos animais aproxima, fica mais fácil — acrescenta Graziella.

Exemplos vão da Colômbia à Índia

Movimentos por mudanças no estatuto jurídico de animais e da natureza ganharam força fora do país na última década. Em 2008, a Constituição do Equador passou a garantir que a natureza tem seu direito de existência. No início do ano, a Suprema Corte colombiana declarou que a Amazônia deve ser protegida como um cidadão.

Há exemplos de rios considerados sujeitos pela lei na Colômbia, na Nova Zelândia, no Equador e na Índia.

No caso dos animais, a França modernizou sua legislação e reconheceu que eles têm sentimentos. Em 2017, o Código Civil português foi alterado e passou a considerar animais como “seres vivos dotados de sensibilidade”, ainda que sujeitos à propriedade. Outros países europeus, como Alemanha, Suíça e Áustria, não os tratam como coisas.

As propostas

PL 6799/2013: Determina que animais são sujeitos de direitos despersonificados. Aprovado na Câmara, deve passar por comissão no Senado.

PL 3670/2015: Determina que animais não sejam considerados coisas, mas bens móveis para efeitos legais. Aprovado no Senado, aguarda análise da Câmara.

STJ: Ação de 2017 aponta omissão legislativa sobre relação afetiva entre pessoas e animais de estimação. Pede aplicação analógica à guarda compartilhada de menores de idade.

Justiça federal de Minas: Ação de 2017 pede reconhecimento do Rio Doce como sujeito de direito.

Fonte: O Globo