Lei de Crimes Ambientais auxilia na proteção do patrimônio cultural brasileiro

A experiência demonstrou que as sanções de natureza civil e administrativa aplicáveis aos violadores dos bens ambientais, dentre os quais estão os culturais, além das tímidas e arcaicas construções penais a respeito do tema, não foram suficientes para coibir as reiteradas práticas lesivas, tornando-se realmente indispensável a pronta colaboração do Direito Penal para a proteção da integridade desse patrimônio, cuja efetiva tutela penal foi expressamente assegurada em nível constitucional (artigos 216, parágrafo 4º e 225, parágrafo 3º, CF/88).

Com efeito, com o advento da nova ordem constitucional, surgiu a necessidade de interação do Direito Penal como instrumento capaz e eficaz de proteção ao meio ambiente considerado de forma ampla. A intervenção penal para punir as atividades e condutas lesivas ao meio ambiente passou não só a ser prevista como expressamente exigida pela Carta Magna.

A necessidade de uma eficaz tutela penal do patrimônio ambiental, nele incluído o aspecto cultural, se justifica pelo fato de que, sendo a Constituição Federal a norma fundamental de cada comunidade e impondo, assim, os seus princípios a todo o ordenamento jurídico, refletindo as concepções dominantes em uma sociedade, espelhando o que nesta há de mais essencial e de mais consensual, obviamente que a mesma está apta para desempenhar o papel de orientadora do legislador penal na escolha dos fatos a serem definidos como crimes[1].

Ressalte-se que a legitimação da tutela penal dos bens que integram o patrimônio cultural não se baseia na defesa de sua propriedade, mas fundamentalmente na função social de tais bens, uma vez que se busca a proteção do patrimônio cultural sob o seu aspecto imaterial, que é suprapatrimonial, ou seja, é desvinculado da ideia de titularidade sobre as coisas corpóreas que ostentam o valor protegido.

Nos tempos modernos, há que se ressaltar, se quisermos alcançar a efetiva proteção do patrimônio cultural brasileiro — mormente através dos instrumentos penais —, temos que romper com os velhos paradigmas que informavam o Direito Penal tradicional e abrir os olhos para a triste realidade de preservação de nossos bens culturais, buscando a máxima eficácia dos novos (e às vezes desafiadores) instrumentos existentes no atual ordenamento jurídico brasileiro.

Consoante a lição de Sérgio Salomão Shecaira, se o conceito de modernidade há de ser associado a um novo paradigma, então há que se criarem condições para a efetivação de um processo de mudança jurídica que contemple a nova realidade social. Os instrumentos da nova conquista exigem travessias oceânicas no plano do Direito, não se admitindo uma mera navegação de cabotagem no âmbito das respostas jurídicas. As embarcações antigas não mais podem ser utilizadas para condução em tão larga travessia. O astrolábio há de ser substituído pelo radar de longo alcance, que permite ágeis comunicações interoceânicas. O interesse de proteção de direitos difusos e coletivos, a modificação da responsabilidade, a preponderância de valores públicos sobre o pensamento privatístico são algumas das muitas modificações resultantes desse processo[2].

Na mesma toada, o eminente doutrinador Alex Fernandes Santiago pondera que é inevitável que se ocupe o Direito Penal da proteção do meio ambiente, em especial quando posta em relevo a degradação de realidades tradicionalmente abundantes que começam a se manifestar como bens escassos, aos quais se atribui agora um valor que não lhes era reconhecido[3].

Nesse diapasão, temos que a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), hoje com duas décadas de vigência, pode ser considerada como um valioso instrumento no aparato legislativo brasileiro em favor dos interesses mais legítimos da coletividade.

Especificamente no que tange aos delitos contra o patrimônio cultural, estão atualmente tipificadas condutas culposas violadoras de tal bem jurídico (Seção IV – Dos Crimes contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural) e superou-se a velha e descabida exigência do tombamento como pressuposto exclusivo para a proteção penal, assegurando ampla possibilidade de reconhecimento do patrimônio cultural por meio de lei, ato administrativo ou decisão judicial.

Como salienta Nicolao Dino de Castro e Costa Neto:

Incluída na categoria dos direitos difusos, de qual é titular toda a coletividade, pode-se afirmar que a higidez do patrimônio cultural representa uma faceta daquilo que se convencionou chamar de meio ambiente sadio. Com efeito, numa perspectiva antropocêntrica, não só os elementos constitutivos do meio ambiente natural são relevantes para a preservação da espécie humana. É necessário assegurar ao indivíduo um referencial histórico, cultural, revelador de sua identidade, vinculando o presente ao seu passado e garantindo, dessa forma, o embasamento indisponível à edificação do futuro da humanidade.

Os bens culturais (reminiscências do passado, testemunhos do presente e vaticínios do futuro) constituem, assim, parte integrante do patrimônio ambiental lato sensu, de indiscutível relevância para a conformação de uma sadia qualidade de vida. Daí a correta inserção dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural no rol dos crimes contra o meio ambiente[4].

Outra grande inovação da Lei de Crimes Ambientais está prevista em seu artigo 3º, que atribuiu expressamente responsabilidade penal à pessoa jurídica pelos crimes contra o meio ambiente (neste incluído o seu aspecto cultural) nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Ainda segundo o diploma legal, a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato.

Apesar da resistência de parte da doutrina em relação à possibilidade de se responsabilizar penalmente a pessoa jurídica, certo é que a Constituição Federal expressamente a previu no que tange às condutas lesivas ao meio ambiente, e o legislador ordinário, em obediência ao comando constitucional, especificou tal responsabilidade através da Lei 9.605/98, onde estão também tipificados crimes contra o patrimônio cultural.

Compreendendo a opção política do legislador constituinte no sentido de se responsabilizar a pessoa jurídica em razão de crimes cometidos contra o meio ambiente, em seu benefício e interesse, a grande maioria da doutrina brasileira e vários de nossos tribunais, inclusive o STJ e o STF, têm assegurado o cumprimento da legislação vigente.

No que tange à possibilidade específica de responsabilização da pessoa jurídica por crime contra o patrimônio cultural, há em Minas Gerais um importante precedente em que o Tribunal de Justiça deixou de trancar ação penal proposta contra uma entidade religiosa que demoliu três casarões devidamente inventariados e que se encontravam em processo de tombamento. A entidade foi denunciada, juntamente com seu representante legal, pelo crime tipificado no artigo 62 da Lei 9.605/98, sendo a decisão monocrática de recebimento da denúncia confirmada pelo TJ-MG e, posteriormente, negado o trancamento da ação penal pelo STJ, conforme ementa abaixo:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ARTS. 62 E 3º, DA LEI Nº 9.605/98. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. INOCORRÊNCIA. DILAÇÃO PROBATÓRIA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. I – O trancamento de ação por falta de justa causa, na via estreita do writ, somente é viável desde que se comprove, de plano, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito, hipóteses não ocorrentes na espécie (Precedentes). II – Qualquer entendimento contrário, i.e., no sentido de se reconhecer a atipicidade da conduta do ora paciente, demandaria, necessariamente, o revolvimento do material fático-probatório o que, nesta estreita via, mostra-se inviável (Precedentes). III – Admite-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício, uma vez que “não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio” cf. Resp nº 564960/SC, 5ª Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, DJ de 13/06/2005 (Precedentes). Recurso desprovido. RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 19.119 – MG (2006/0042690-1).

Outra questão para a qual gostaríamos de chamar a atenção diz respeito à inaplicabilidade do chamado princípio da insignificância em sede de delitos cometidos contra o patrimônio cultural brasileiro.

Como sabido, a tutela penal dos interesses difusos, devido às características típicas e diferenciadas destes, exige um tratamento também diferenciado da criminalidade, o que implica em mudanças adaptativas profundas no sistema penal.

Ora, os crimes que atentam contra bens protegidos ou ligados diretamente ao meio ambiente cultural são caracterizados por uma vitimação de massa, ofendendo, direta ou indiretamente, círculos amplos que justificam uma maior preocupação por parte do Estado inclusive no que tange às futuras gerações, não sendo lícito, a nosso ver, a invocação do princípio da insignificância em casos tais em razão, inclusive, da indisponibilidade do bem jurídico tutelado.

Ivete Senise Ferreira, analisando os crimes ambientais, pondera:

Na segunda metade do séc. XX, porém, novos problemas vieram solicitar a atenção do ordenamento jurídico pela constatação de uma progressiva degradação, e por vezes destruição, do meio ambiente, aliada à previsão das consequências catastróficas que isso acarreta para a vida do homem e dos outros seres da natureza, devendo ser por todos os meios obstada para garantir a sobrevivência da própria humanidade.

O Direito Penal, parte integrante desse ordenamento jurídico, não pode assim deixar de oferecer a sua contribuição para essa missão salvadora, justificando-se a sua intervenção não somente pela gravidade do problema e pela sua universalidade, mas também porque o direito ao meio ambiente, na sua moderna concepção, insere-se entre os direitos fundamentais do homem, os quais incumbem tradicionalmente ao Direito Penal defender, como ultima ratio[5].

Por tudo isso, comungamos do entendimento de Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas, para quem o chamado Direito Penal mínimo não deve ser aplicado em tema de infrações ambientais, onde os danos são de consequências graves e nem sempre conhecidas, e a preservação é um dever a ser cumprido com o máximo empenho e seriedade, não apenas para esta, mas principalmente para as futuras gerações[6].

Nesse sentido, vale ressaltar a jurisprudência:

Não é de se ter como juridicamente admissível a aplicação do princípio da insignificância ao delito inscrito no art. 63, da Lei nº 9.605/1998, tendo em vista que, por se tratar de crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural, o bem jurídico tutelado é a estrutura urbanística e o patrimônio cultural, que, pela sua natureza difusa, não se apresenta capaz de ser mensurado em seus efeitos penais, para fins de incidência do referido princípio da insignificância. (TRF 1ª R.; ACr 0000337-07.2008.4.01.3310; BA; Quarta Turma; Rel. Des. Fed. I’talo Fioravanti Sabo Mendes; Julg. 14/06/2011; DJF1 13/07/2011; Pág. 107)

Quanto às condutas típicas acerca de bens integrantes do patrimônio cultural, há, no texto do Código Penal brasileiro, de 1940, as seguintes previsões:

Art. 165 (Dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico). Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico:
Pena – detenção de seis meses a dois anos, e multa.
Art. 166 (Alteração de local especialmente protegido). Alterar, sem licença da autoridade competente, o aspecto de local especialmente protegido por lei:
Pena – detenção de um mês a um ano, ou multa.

Em que pese terem vigido por mais de cinco décadas, os referidos tipos penais, inspirados no artigo 733 do Código Rocco — que prevê como contravenção o dano ocasionado a coisa de valor arqueológico, histórico ou artístico —, não lograram alcançar a efetiva proteção do patrimônio cultural brasileiro como era de se esperar.

Na verdade, as aludidas construções típicas já nasceram eivadas de sérias deficiências, como a ausência de modalidade culposa e a exigência descabida de tombamento dos bens arqueológicos (cuja proteção passou a se dar simplesmente por força da Lei 3.924/61, independentemente de tombamento), pelo que restaram praticamente inaplicáveis.

Com efeito, raros são os precedentes jurisprudenciais acerca do tema e, quando encontrados, os acórdãos na maioria das vezes evidenciam a absoluta ineficiência protetiva dos tipos penais em comento.

Atualmente, os artigos 165 e 166 do Código Penal brasileiro encontram-se tacitamente revogados pelos artigos 62 e 63 da Lei 9.605/98, que tratam dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural e conferem maior amplitude protetiva ao patrimônio cultural brasileiro.

Durante as duas décadas do advento da Lei de Crimes Ambientais, podemos afirmar, com segurança, que as funções repressiva e preventiva do Direito Penal foram alcançadas com muito maior eficácia e efetividade, no que pertine aos crimes contra o patrimônio cultural, em comparação às mais de seis décadas de vigência dos tipos dos artigos 165 e 166 do Código Penal brasileiro, hoje revogados.

Como acima dito, não se exige mais, por exemplo, o tombamento ou a proteção por lei para a configuração do objeto material dos delitos, prevendo a novel legislação a possibilidade de responsabilização criminal quando houver destruição, deterioração, inutilização ou alteração indevida de bem de valor cultural protegido por qualquer forma, a exemplo de atos administrativos (inventário, tombamento, desapropriação, decreto etc.), lei ou mesmo decisões judiciais (sejam liminares ou de mérito).

Nesse sentido, é merecedor de destaque o seguinte precedente:

PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO CUL TURAL. ART. 63 DA LEI Nº 9.605/98. AUSÊNCIA DE TOMBAMENTO DO BEM. DESNECESSIDADE. BEM INVENTARIADO PELO IPHAN. FORMA DE PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO RECONHECIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ART. 216, §1º, DA CF/88. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. I – O art. 63 da Lei nº 9.605/98 optou pela proteção do patrimônio cultural de forma genérica, por lei, por ato administrativo ou por decisão judicial. Sem mencionar expressamente o tombamento ou o inventário, que, indiscutivelmente, encontram-se compreendidos nas formas ali previstas, à luz do art. 216, §1º, da CF/88. II. Com efeito, por ser o inventário forma de proteção do patrimônio cultural brasileiro, prevista no art. 216, § 1º, da CF/88, desnecessário é o tombamento prévio, para que o bem seja considerado protegido pela união. III. Inventariada a edificação pelo instituto do patrimônio histórico e artístico nacional. Iphan, com fins de preservação, a competência para processar e julgar ação penal, para apuração do crime previsto no art. 63 da Lei nº 9.605/98, é da justiça federal. IV. Recurso provido. (TRF 1ª R.; RecCr 2006.39.00.008274-1; PA; Terceira Turma; Relª Desª Fed. Assusete Dumont Reis Magalhães; Julg. 29/09/2008; DJF1 31/10/2008; Pág. 76).

Enfim, cabe aos operadores do Direito, sobretudo os membros do Ministério Público brasileiro, enquanto titulares exclusivos da ação penal pública, exercer a rígida aplicação de tais previsões típicas, a fim de que o Direito Penal Ambiental cumpra sua missão de prevenção e repressão às condutas violadoras do patrimônio cultural brasileiro.


[1] FREITAS, Vladimir Passos de e FREITAS, Gilmar Passos de. Crimes contra a natureza. 9. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais. 2012. p. 36.
[2] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 18.
[3] SANTIAGO, Alex Fernandes. Fundamentos de direito penal ambiental. Belo Horizonte: Del-Rey. 2015. p. 83.
[4] Crimes e infrações administrativas ambientais. Comentários à Lei 9.605/98. 2. Ed. Brasília: Brasília Jurídica. 2001. p. 349.
[5] Tutela Penal do Patrimônio Cultural. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1995. p. 67-68.
[6] Op. Cit p. 36.

Fonte: Marcos Paulo de Souza Miranda