Em meio à área mais preservada da caatinga, no sertão da Bahia, há um viveiro de 20 metros de extensão por 6 metros de altura. A estrutura metálica contrasta com os morros verdes do Boqueirão da Onça, uma área de preservação recentemente delimitada como parque nacional e área de proteção ambiental.
O contraste é por uma boa causa: o viveiro foi construído por um projeto inovador de preservação da arara-azul-de-lear, que está em risco de extinção. Redescoberta há 40 anos, a ave é um dos 182 animais da caatinga que estão sob ameaça. Ali, no viveiro, foram colocados seis indivíduos desta espécie (três fêmeas e três machos). Elas nasceram em cativeiro, na Loro Parque Fundación, da Espanha. Chegaram ao Brasil em agosto do ano passado e foram libertadas em janeiro deste ano.
O G1 esteve no Boqueirão da Onça para conhecer o projeto de soltura destas aves. As ameaças à conservação das espécies e o desafio de preservá-las são foco do especial “Desafio Natureza”, que já abordou a ‘redescoberta’ da arara-de-lear na região e as ações de preservação da onça-pintada e parda na caatinga.
Ao todo, existem atualmente 1.700 araras-azuis-de-lear, a maior parte na região do Raso da Catarina (veja abaixo o mapa). O Boqueirão da Onça já chegou a ter cerca de 30 destas aves, mas quase todas sumiram na década de 1990. Restaram apenas duas. O desaparecimento repentino é atribuído à ação de traficantes de animais. Como as duas que ficaram não se reproduziam, a solução foi trazer mais.
Do viveiro para a vida livre
Para chegar ao Boqueirão da Onça, a equipe de reportagem andou por rodovias e estradas de terra. O local, de difícil acesso, ainda não está aberto para visitação de turistas.
O viveiro está construído em uma área conhecida como Cercadinho, porque é cercado pelas montanhas da região. A dois quilômetros dali fica a casa dos pesquisadores, onde os biólogos que trabalham no projeto se hospedam durante suas estadias, com revezamento a cada 15 dias. Durante o período, eles se tornam os “treinadores de vida livre” para as aves.
O G1 acompanhou uma dessas solturas.
A cena de uma caixa se abrindo com aves voando livremente está longe de ser realidade para a soltura dessas araras. A técnica empregada foi a de “soft release”: após treinamento, uma janela do viveiro fica aberta, para que a ave voe quando se sentir mais à vontade, e retorne se achar necessário.
Por isso, antes de soltá-las, era preciso prepará-las. O desafio da preservação da espécie envolve diversos testes, como:
- Exames de sangue para saber se as aves de cativeiro não possuem doenças que possam contaminar a população livre
- Treinamento contra predadores
- Exercícios para fortalecer a musculatura para voos longos
- Mudança de cardápio, da ração para o alimento da caatinga
- Treinos para localizar as palmeiras de licuri, principal alimento destas aves
- Colocação de anilhas (pulseiras) numeradas e GPS para monitoramento
“Temos pouquíssimos exemplos de programas de soltura no Brasil para seguir. Para construir o projeto de soltura das araras no Boqueirão, fizemos um levantamento de todas as iniciativas que soltaram psitacídeos ao redor do mundo inteiro. Nos baseamos em vários e escolhemos as estratégias que nos pareceram mais certeiras para seguir”, explica Thiago Filadelfo, biólogo, coordenador de campo do Projeto de Soltura Experimental da Arara-Azul-de-Lear no Boqueirão da Onça.
Aversão a humanos e predadores
No mix de técnicas, uma delas chamou a atenção: os pesquisadores evitam que as araras-de-lear desenvolvam algum tipo de tolerância aos humanos. Assim, sempre que se aproximam do viveiro, chegam em silêncio e evitam falar com as araras. Se precisam entrar, fazem barulho e entram “descaracterizados da forma humana”, como diz Filadelfo.
“Nos exercícios de aversão humana, tínhamos que fazer o treino com um estímulo negativo em que um de nós se vestia com uma manta preta que cobria o corpo inteiro, incluindo os pés, e não deixava transparecer uma forma com braços e pernas. A pessoa ainda usava um capuz para cobrir a cabeça”, conta. Isso porque as aves psitacídeas, como os papagaios e periquitos, são muito inteligentes e, se associarem que o humano não é perigoso, se tornam presa fácil para o tráfico de aves.
Outro treino foi para terem aversão de predadores, em especial contra a águia. No entanto, como a área de proteção tem também comunidades tradicionais, os biólogos incluíram o exercício de aversão ao cachorro: construíram uma plataforma do lado de fora do viveiro e ficavam ‘passeando’ com o cão por ali, incitando-o a latir e fazer barulho para assustar as araras. Estressante? Sim, mas necessário.
Não dê licuri, ensine a buscar
Quando estavam em cativeiro, as seis araras-de-lear comiam frutas e ração apropriada para a espécie. Na caatinga, vão se alimentar de licuri, um coquinho que cresce aos cachos em palmeiras da região e é rico em água, gordura e nutrientes.
Algumas dessas palmeiras foram plantadas dentro do viveiro para que as aves se familiarizassem com as plantas. Paralelamente, os biólogos passaram a colocar o licuri em meio à ração, aumentando a proporção aos poucos, até que elas aprendessem também a abrir o coquinho com o bico.
“Em especial, no treinamento alimentar, nós fomos oferecendo apenas a ração industrializada por 10 dias, depois misturamos no pote a ração com alimentos nativos da caatinga em uma proporção 50% e 50% por 10 dias, depois apenas os alimentos nativos no pote por 10 dias, e por fim apenas os alimentos nativos nos pés de licurizeiros e árvores do recinto dai em diante”, explica Filadelfo. Pensa que ser livre é fácil?
O voo da liberdade
Antes de ser solta na natureza, cada uma destas aves passou pela colocação de anilhas, uma espécie de pulseira amarela com número de identificação, e de um aparelho de geolocalização, o GPS. Os equipamentos são importantes para que os biólogos monitorem por onde as araras voaram e quais distâncias percorreram.
De acordo com Filadelfo, todas já deixaram o recinto e voaram pelo entorno explorando a caatinga. As araras-de-lear selvagens podem percorrer até 60 km em busca de alimento mas, por enquanto, estas cativeiro se distanciaram a um raio de 1 a 2 km – ainda estão cautelosas com o ambiente.
Mas, a cada batida de asas, os biólogos veem uma conquista. “Desde semana passada já temos dois indivíduos explorando mais longe, indo até 7 a 8 km”, diz Filadelfo.
Parte das araras ainda está voltando para dormir no recinto, que permanece aberto e com alimento, e parte está dormindo na caatinga.
A elaboração e execução do projeto tiveram apoio da Enel Green Power Brasil; Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave), do ICMBio; Instituto Arara Azul; Instituto Espaço Silvestre; Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) e do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo.
Ararinha-azul
Um outro projeto semelhante começa a ser desenvolvido em Curaçá, também na Bahia.
O esforço é para soltar espécimes da ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), criticamente ameaçada e já extinta na natureza. Foi esta espécie que inspirou o personagem Blu do filme Rio, lançado em 2011 com direção do brasileiro Carlos Saldanha. Em todo o mundo, estima-se que existam apenas 160 destas aves, todas em cativeiro (confira as diferenças e semelhanças entre as espécies no quadro ao fim da matéria).
De acordo com Camile Lugarini, chefe do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), de Juazeiro, o projeto está em fase de construção do viveiro, que será erguido no mesmo local onde, em 2000, desapareceu o último exemplar livre da espécie.
A expectativa é que 50 ararinhas-azuis sejam repatriadas, ou seja, trazidas de cativeiros no exterior. Parte delas serão reintroduzidas na fauna brasileira.
O centro deverá custar US$ 1,5 milhão e será construído com apoio de instituições parceiras como a Al Wabra Wildlife Preservation (AWWP), do Catar; a Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP), da Alemanha; a Parrots International, dos EUA; o Jurong Bird Park, de Singapura; a Fazenda Cachoeira e o ICMBio.
Fonte: G1