No alto da serra do Gandarela, onde uma estrada de terra pouco frequentada é a única via de acesso, uma placa solitária avisa que a terra tem dono. “Propriedade Particular”, lê-se abaixo do logo da Vale.
O conjunto de montanhas a apenas 40 km de Belo Horizonte, com mais de mil nascentes e vegetação preservada, é a última área intocada pelas mineradoras no coração do Quadrilátero Ferrífero – o maior polo de produção do país, explorado há mais de 300 anos.
Debaixo daquela serra, toneladas de minério de ferro estão há décadas na mira de empresas, vistas como uma espécie de “reserva” para quando as minas já abertas na região estiverem perto da exaustão.
Dona de grande parte daquele território, a Vale se prepara para ceder terras para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Numa queda de braço histórica, parte da paisagem abrigará o Parque Nacional Serra do Gandarela.
Criado por decreto em outubro de 2014, o parque, oficialmente, ainda não tem a posse de nenhum dos 31 mil hectares previstos.
“Vamos receber as terras via compensação ambiental das empresas”, afirma Tarcísio Nunes, diretor do parque nacional. Do total, 50% da área do parque ainda são da Vale e 20% são da mineradora AngloGold. Samarco e imobiliárias são donas do restante. “Há pedidos de lavra por todo o território. Mas uma vez que a área virou parque, não se pode mais minerar”, diz Nunes.
A Vale confirmou que 16 mil hectares – dos 22 mil que detém na serra do Gandarela – estão dentro da área de proteção integral. “A destinação desse terreno ao parque nacional encontra-se em fase de regularização fundiária, em acompanhamento direto pelo ICMBio”, respondeu por e-mail.
Corrida contra o tempo
Ademir Martins Bento, 72 anos, foi um dos primeiros a perceber que a serra estava prestes a ser perfurada para extração de ferro. Em 2002, como funcionário da prefeitura de Caeté, ajudou a administração pública a recusar um pedido que abriria caminho para a mineração no local.
“Desde pequeno, caminhava na região com meu pai, guiei muitas expedições de pesquisa também, conhecia toda a beleza e importância das águas que vinham do Gandarela”, relembra.
Anos mais tarde, Bento e as comunidades souberam do Projeto Apolo, da Vale. O complexo tinha uma produção estimada em 24 milhões de toneladas por ano. Além das cavas, o Gandarela ganharia usina de beneficiamento, oficinas, pilhas de estéril, pátio de produtos, barragem de rejeitos e uma ferrovia de mais de 20 km, segundo o Relatório de Impacto Ambiental publicado em 2009.
Em resposta à investida da Vale, Bento pediu ajuda para o Projeto Manuelzão, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Saulo Alvares de Albuquerque, gestor ambiental que integrava o projeto à época, foi um dos primeiros a responder ao chamado.
“Foi uma corrida contra o tempo. Nós tínhamos que mandar a proposta com pedido de criação do parque antes que a Vale protocolasse o pedido da mina”, relembra Albuquerque. “Percebemos que a proposta da Vale era interligar todas suas minas do Quadrilátero Ferrífero. As comunidades ficaram apavoradas.”
O dossiê encaminhado ao ICMBio se transformou numa proposta oficial em 2010. Depois de anos de queda de braço com as mineradoras, os limites originais propostos para o parque não saíram como o esperado pelos moradores locais.
“Foi o consenso possível”, diz Nunes. “Não acreditava que o parque seria criado diante da força das mineradoras. Apesar de não ser o desenho ideal, entendo como vitória pra conservação ter 31 mil hectares no coração do Quadrilátero Ferrífero”, complementa.
A disputa pelo ferro
O atual desenho do Parque Nacional da Serra do Gandarela não protege da destruição áreas consideradas importantes para a conservação. “Um bom pedaço ficou de fora justamente pra atender aos interesses da Vale no processo de disputa”, avalia Nunes.
Por enquanto, a Vale não tem autorização para minerar na área que ficou de fora do parque. “O Projeto Apolo foi amplamente reformulado e a revisão do Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental foi protocolada em julho de 2018”, afirma a empresa. A análise do processo ainda não foi retomada pelo governo estadual de Minas Gerais.
A serra do Gandarela está inserida nos municípios de Caeté, Nova Lima, Raposos, Rio Acima, Barão de Cocais, Itabirito, Ouro Preto e Santa Bárbara. Faz ainda divisa com Mariana e está perto de Brumadinho – duas cidades afetadas recentemente por tragédias causadas por barragem de rejeitos.
“Dentro do Quadrilátero Ferrífero, a serra do Gandarela é o último reduto ainda não impactado pela mineração de ferro”, ressalta Paulo Rodrigues, geólogo e membro do Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela.
“Fábrica” de água
Com áreas conservadas de Cerrado e Mata Atlântica, 270 cavernas localizadas, mais de 300 espécies identificadas entre onças parda e pintada, lobo-guará, veado campeiro e anta, a serra do Gandarela abriga ainda um dos sistemas mais ameaçados do país: a canga.
Essa formação é como uma crosta ferruginosa que fica por cima do solo, resistente à erosão e porosa – permite que a água da chuva infiltre e forme grandes aquíferos. Ela é encontrada em poucos lugares do país e corre o risco de sumir por, numa triste coincidência, ocorrer em zonas de interesse da mineração.
“Daqui saem as águas que abastecem duas bacias hidrográficas importantes para o país, a do Doce e do São Francisco, ambas já bem impactadas por rejeitos da mineração”, diz Rodrigues.
É do rio das Velhas, afluente do São Francisco, que vem a água que abastece 70% da população de Belo Horizonte, além de outras cidades da região metropolitana. “Já pensou o que aconteceria caso esse rio, como aconteceu com o Paraopeba e o Doce, fosse contaminado depois de um rompimento de barragem da Vale?”, questiona.
Gisela Hermann, bióloga e membro do conselho consultivo do parque, frequenta a região desde a infância. “A gente vê quase todos os mananciais e cursos d’água já afetados pela mineração”, diz sobre o Quadrilátero Ferrífero.
Para Hermann, o colapso ambiental é iminente. “A hiperexploração dos recursos naturais em algumas regiões deixa evidente uma ameaça que já existia e era falada há anos. A tragédia só deixou as coisas mais explícitas”, diz, lembrando a tragédia da Samarco, Vale e BHP em Mariana, que contaminou o rio Doce e matou 19 pessoas, e a recente catástrofe em Brumadinho, que deixou pelo menos 300 pessoas mortas e um rastro de destruição ambiental.
Ademir Martins Bento diz se tratar de “uma briga com gigantes”. “Depois desses crimes todos, a Vale ficou numa situação mais delicada. E a população, espero, mais atenta”.
Fonte: Deutsche Welle