Cratera de empresa da Vale debaixo do mar gera conflito com pescadores em Santos

Maria Vitória tem 8 anos, pele negra e grandes olhos amendoados. Com movimentos ágeis próprios de uma caiçara, ela entra e sai dos barcos de pesca atracados na palafita de seu avô, apontando ora um filhote de siri escondido, ora uma boneca Barbie que flutua entre o lixo da água quase imóvel debaixo da casa. “Eu sempre pego os brinquedos que passam na maré”, explica.

Neta de pescadores, a menina diz que não sabe nadar, embora tenha como quintal o rio Casqueiro, que divide as cidades de Santos e Cubatão, no litoral paulista. Além de toda a poluição visível, a região foi conhecida no passado como Vale da Morte por ter sido considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1981, a cidade mais poluída do mundo. Hoje, a ameaça de um novo desastre ambiental volta a rondar a região. O motivo: uma cava subaquática.

Maria Vitória, neta de pescadores, pega da maré os brinquedos que foram jogados no lixo

Iniciada em 2017, a cava é um buraco com diâmetro maior do que o estádio do Maracanã e 25 metros de profundidade, escavado pela empresa VLI Multimodal S.A. debaixo das águas do estuário de Santos, ambiente aquático de transição entre o rio e o mar onde se localiza o porto mais movimentado do Brasil. O local onde a cava foi construída é chamado de Largo do Casqueiro e pertence à União.

Em si, a obra parece uma solução fácil para abrigar todo o sedimento dragado do canal de Piaçaguera, onde fica o Terminal Integrador Portuário Luiz Antônio Mesquita, de propriedade da empresa Ultrafertil, mas controlado pela VLI, empresa fundada em 2010 pela Vale para reunir todas as atividades de carga da mineradora: transporte em ferrovias, terminais e portos.

O canal de Piaçaguera desemboca no estuário de Santos. A obra em andamento busca aprofundar o canal, que tem cerca de 10 metros, para 15 metros, permitindo que navios maiores cheguem ao porto da empresa.

Com a dragagem, porém, o chão removido traz à tona uma longa história de contaminação. É como se fosse uma linha do tempo de poluição na forma de camadas químicas sedimentadas por décadas de atividade industrial na areia no fundo do canal. Entre os químicos sedimentados estão componentes altamente tóxicos e cancerígenos, como amônia, cianeto e mercúrio. A VLI garante que a quantidade de tóxicos é baixa, mas os moradores seguem preocupados.

Além disso, o processo de licitação da obra, feito pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), é alvo de ações do Ministério Público Federal (MPF). Licenças vencidas e irregulares e até mesmo indícios de improbidade administrativa por parte do órgão regulador e da VLI fazem parte dos questionamentos.

O peixe sumiu

Apenas 2 quilômetros separam a cava subaquática da Vila dos Pescadores, comunidade com 20 mil habitantes onde Maria Vitória estendia o braço para alcançar a boneca entre outros objetos de plástico flutuantes.

Além de ser próximo à Vila dos Pescadores, o local escolhido para o buraco é considerado um berçário da vida marinha da região, uma área de manguezal que garantiu por décadas o sustento e a subsistência dos cerca de 200 pescadores e suas famílias.

O local escolhido para a cava é considerado um berçário
Vida marinha na Vila dos Pescadores Julia Dolce/Agência Pública
Olival Marino da Silva pesca no Canal de Piaçaguera há pelo menos 50 anos

Geraldo Malaquias, avô de Maria Vitória, vive naquela mesma palafita há pelo menos 20 anos. Pescador profissional, o homem, conhecido como Colorido, vem recuperando sua cor nas últimas semanas após meses de dores renais que o impossibilitaram de trabalhar. Medicado, ele conta que se sente melhor, mas a dor volta com qualquer esforço feito. Para ele, o motivo da doença foi a extrema poluição da região. “A gente pega essa poluição toda, principalmente quando passa o dia na água. A gente sente tanto mau cheiro quanto comemos os pescados”, pondera Colorido.

Julia Dolce/Agência Pública

Naturais de Pernambuco, Geraldo e sua esposa, Maria José, têm dois filhos adultos e uma menina de 3 anos, além de ajudarem no cuidado da neta. Nos últimos anos, o pescador diz que um dos principais problemas da família tem sido a diminuição do número de peixes e siris.

“Lá dentro da cava, que agora está cercado, era o melhor ponto de pesca. Agora a gente tem que ir mais longe, gastar mais com gasolina. Antes eu largava a rede aqui na frente de casa e cansei de pegar 100 quilos, 150 quilos de peixe. Agora não é assim. Meu cunhado pegou o barco ontem mesmo para pescar, saiu às 23 horas e voltou às 5 horas sem nenhum peixe.”

A família, que antes tirava uma renda mensal em torno de R$ 800, agora dificilmente ganha R$ 400 vendendo os peixes e siris. Além da diminuição da quantidade de pescados em si, os compradores evitam comprar qualquer peixe que venha da poluída cidade litorânea. “Se a senhora chegar em qualquer canto com a mercadoria e disser que é daqui de Cubatão, ninguém compra. Depois que as pessoas ficaram sabendo da cava, ficou ainda mais difícil. A notícia foi longe”, conta Colorido.

Como consequência da falta de peixes e de dinheiro, a família come menos, como explica Maria José, que foi diagnosticada com anemia: “Quando não tem peixe aqui na mesa, tem no máximo um ovo de proteína”. Colorido lembra, saudoso, que antes os peixes pulavam aos montes em seu “quintal”. “Eu brincava com a mulher, falava ‘já bota a panela no fogo para nós comer’. Hoje em dia não tem isso, não”, acrescenta.

Marly Vicente, que trabalhou por 12 anos como agente de saúde na UBS da Vila dos Pescadores, diz que a situação “dá um nó na garganta”. O incômodo vem principalmente da incapacidade de provar a contaminação por poluentes dos moradores da comunidade. “Eu, daqui de dentro, vejo o que de fato está acontecendo. Mas é uma contaminação química, você não vê, vai sentindo os impactos aos poucos, é crônico. Vemos pessoas morrendo com causas desconhecidas, muitos casos de câncer, problemas renais, e as pessoas têm medo de falar sobre isso. Não somos pesquisadores, mas ligamos os pontos. O que não quer dizer que a culpa é exclusiva dessa cava, mas ela pode ser mais uma responsável”, afirma.

Marly é a principal liderança da comunidade e a voz mais crítica a respeito da construção da cava. A reportagem a acompanhou percorrendo a vila; ela parava de porta em porta conversando com os moradores, perguntando se haviam melhorado da saúde e consolando os que ainda estavam doentes. “Bom dia, meu gostoso! Como você tá, meu amor?”, repetia para cada pescador.

“Eu sou uma velha que não quer ser vovó, e sim brigar pelo meio ambiente, me sinto bem assim. Nasci na beira da maré e sempre gostei do mangue”, explica Marly, que há quatro anos fundou o Instituto Socioambiental e Cultural da Vila dos Pescadores (ISAC-VP) para lutar pelos direitos dos moradores.

Contaminação

Um estudo de 2018 da própria Cetesb indicou o canal de Piaçaguera como detentor da pior qualidade de água na costa paulista. Já uma pesquisa da Associação Internacional de Resíduos Sólidos em parceria com a Secretaria de Meio Ambiente da Prefeitura de Santos, em 2019, mostra que o município produz 60 toneladas diárias de lixo. Destas, 12,5% vão parar no mar, sendo 85% plástico.

A contaminação dos peixes, também, é documentada há décadas. Segundo Élio Lopes, mestre em engenharia urbana e diretor do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia de São Paulo (Crea), que foi gerente da Cetesb, dados de um estudo feito pela Cetesb em 2002 apontam que animais marinhos como ostras, caranguejos e tainhas aparecem com valores de poluentes acima do limite máximo permitido.

“Esses produtos contaminaram os peixes, lagostas com valores altíssimos de químicos, muito acima do permitido, inclusive de ingredientes que formavam o agente laranja”, destacou Lopes, que também foi secretário do Meio Ambiente de Guarujá.

Outro estudo sobre os sedimentos do canal de Piaçaguera, conduzido a pedido do próprio engenheiro em 2017, encontrou excessos de poluentes hidrocarbonetos. No caso do fenantreno, produzido na queima incompleta de carvão e gasolina, foram encontrados 170,99 mg/kg de sedimento analisado. O valor máximo do químico estabelecido pela Cetesb para zonas industriais é de 40 miligramas por quilo.

O desenvolvimento de câncer, principalmente nos rins, pele e bexiga, é o efeito tóxico mais significativo em humanos e animais desse tipo de hidrocarboneto, que causa também tosse crônica, verrugas e anemia, em casos de exposição aguda. O estudo localizou em dois pontos no canal de Piaçaguera as concentrações acima dos valores mínimos estabelecidos.

Procurada pela Pública, a Cetesb informou que mais de 10 mil ensaios físicos, químicos e biológicos antecederam a aprovação da abertura da cava. Já a VLI informou que foram colhidos pelo menos 60 mil dados nos últimos dez anos pela empresa, confirmando que a concentração dos contaminantes depositados na cava é tão pequena que não representa risco para seres humanos.

O gerente geral de Portos da VLI, Alessandro Gama, alega que os sedimentos contaminados apresentam maior risco no canal de Piaçaguera do que depositados no fundo da cava. “Esses materiais estavam espalhados por um canal de 5 quilômetros de extensão e 100 metros de largura”, afirma. “Os sedimentos não eram adequados para ficarem em disposição oceânica [no fundo do canal de Piaçaguera], mas não cria riscos para a saúde humana”, completa.

O porta-voz da empresa garante que, por meio de uma tecnologia de sucção, o processo de transporte dos sedimentos, que seria a parte mais arriscada para o meio ambiente pelo risco de espalhar os sedimentos, foi feito de maneira segura. “Não houve nenhum vazamento durante toda a operação. A vantagem desse tipo de armazenamento é que evitamos mais de 200 mil viagens de caminhão que levariam os sedimentos a um espaço em terra.”

O licenciamento caducou

A história da cava subaquática de Cubatão teve início em 2003, com o plano da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) de aumentar a profundidade do canal de Piaçaguera de 10 metros para 12 metros a fim de permitir que navios carregando aço chegassem ao porto da empresa. Primeira grande siderúrgica brasileira privatizada, em 1993 a Cosipa foi comprada por um grupo de investidores liderados pela Usiminas. Em 2005, a Cosipa adotou o nome da investidora.

Esses meros dois metros, porém, já levantariam parte das camadas sedimentadas de poluentes depositados no estuário entre os anos 1960 e 1980, quando não existia nenhum tipo de controle ambiental das indústrias de Cubatão. Por isso, na época, a proposta da cava como local de armazenamento foi amplamente debatida. O licenciamento prévio, emitido pela Cetesb em 2005 com base em estudos de impactos ambientais, previa 40 exigências para a empresa. Entre elas, a de que a cava deveria ser confinada, ou seja, cercada e tampada por algum material que impedisse a propagação do conteúdo, e construída em um local que já estava ambientalmente degradado para não gerar ainda mais poluição.

O projeto da Cetesb propôs três lugares: o Dique do Furadinho, uma área de propriedade da própria Cosipa; o fundo do próprio canal de Piaçaguera; e o Largo do Casqueiro – local onde, hoje, a cava foi feita pela LVI.

À época, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) defendeu o primeiro local como prioridade e reiterou que a forma mais segura de armazenamento seria em terra, e não no mar, e que os sedimentos teriam, ainda, que passar por tratamento.

Durante mais de uma década, o projeto da Usiminas aguardou o trâmite de licenciamento, conseguindo a Licença de Instalação pela Cetesb apenas em setembro de 2016. Aproveitando-se dele, no ano seguinte a VLI, cujo terminal privado fica nas margens opostas ao da Usiminas, pediu ao Ibama para aprofundar o canal em mais 3 metros, alcançando 15 metros de profundidade. O projeto levantaria poluentes ainda mais antigos e pesados.

Na mesma época, a Cetesb começou a defender o aprofundamento do canal como uma necessidade ecológica, segundo o pesquisador da Unifesp e mestre em análise ambiental Integrada Jeffer Castelo Branco.

Não foi feito um novo estudo de impacto ambiental. O órgão público utilizou o licenciamento prévio, já caduco desde 2010 – quando se completaram cinco anos desde que fora expedido a pedido da Cosipa –, para aprovar a dragagem de 15 metros e a cava da VLI. A justificativa do órgão para pular as etapas seria que a VLI realizaria uma espécie de “serviço público” de interesse da própria Cetesb: a limpeza do canal.

Os problemas não param por aí. A cava subaquática construída pela VLI é diferente da aprovada no papel pela Cetesb e pelo Consema em 2005. A aprovação foi dada para um projeto de cava confinada, ou seja, cercada e coberta por concreto, como existe em diferentes países do mundo. A engenharia impede a mistura de poluentes com a água, a fauna e a flora subaquática.

Conforme a VLI, porém, a cratera aberta atualmente é cercada apenas por uma barreira de silte, uma cortina de contenção que os pescadores alegam não ser suficiente para barrar a água. Em visita ao local, a reportagem constatou que a barreira não aparenta estar contínua ao redor do perímetro da cava.

A VLI pretende “tampar” a cava com areia limpa após a sedimentação dos poluentes.

Em entrevista à Pública, Alessandro Gama, representante da VLI, reitera que a densidade dos sedimentos dentro da cava impede que o material se misture com a água, o que torna desnecessário “qualquer tipo de revestimento para garantir sua estabilidade”.

A cava da VLI é considerada uma das maiores já feitas no mundo, com capacidade para receber até 2,4 milhões de metros cúbicos de sedimentos. Em diversos países da Europa e nos Estados dos Estados Unidos, o procedimento da cava é proibido ou limitado a até 200 mil metros cúbicos.

Questionamentos na Justiça

Em maio de 2017, sabendo da demanda e dos riscos envolvidos, o Ministério Público de São Paulo (MPSP), em conjunto com o Ministério Público Federal (MPF), fez uma recomendação com urgência para que a Cetesb não licenciasse a operação do projeto da VLI, alegando que a cava não era uma medida segura para dispor o material dragado.

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Recomendação para a não autorização da abertura da Cava do Casqueiro, feita pelo Ministério Público Federal em maio de 2017Isso não parou a obra, que andou a toque de caixa: em junho de 2017, a Cetesb aprovou o licenciamento de operação da dragagem do canal de Piaçaguera, última fase de licença, dando início ao processo e à construção da cava no Largo do Casqueiro. No começo de 2018, os sedimentos passaram a ser depositados.

Para o promotor de urbanismo e meio ambiente de Santos, Daury de Paula, todo o processo de licenciamento representa uma ilegalidade. “A VLI deveria ter requerido um novo licenciamento. É estranhíssimo que o órgão ambiental, ao invés de pedir um novo estudo, basicamente afirmou ‘olha, essa dragagem mais profunda vai ser boa para o meio ambiente, então não precisa de novo'”, destaca o promotor.

“Um novo estudo de licenciamento não é mera formalidade. Com o passar de tantos anos, as tecnologias se alteraram, evoluíram, bem como a forma de a sociedade encarar os problemas ambientais. Mas não houve nem estudo nem novas audiências para a comunidade se informar e opinar a respeito do novo plano”, completa.

O argumento da VLI, acatado pela Cetesb, de que a dragagem do canal beneficiaria o meio ambiente não foi baseado em nenhuma evidência, segundo o promotor. “O órgão ambiental tirou da cartola que cavar até 15 metros seria bom ao meio ambiente. Esse tipo de coincidência não existe. Isso precisa ser demonstrado por análises técnicas, e não vimos nenhum estudo da Cetesb sobre isso. E, se não houve, não se pode apenas dizer que isso é melhor para o meio ambiente e que não é apenas um projeto com efeitos comerciais, legítimos, de ter um canal de passagem para navios maiores”, afirma De Paula.

O MP e o MPF, então, entraram com um processo ambiental em junho de 2018 contra a Cetesb, a Usiminas e a Ultrafertil, dona do terminal da VLI, para tentar impedir a continuação da obra. O documento aponta a irregularidade do EIA/Rima e argumenta que o licenciamento dizia respeito a outro projeto, com impactos diferentes.

Na primeira instância, a tutela cautelar foi negada pelo juiz Décio Gabriel Gimenez, da 3a Vara de Santos. O MP e MPF entraram com recurso. “Nós recorremos e ainda não houve decisão. Praticamente todo o material já foi depositado na cava”, lamenta o procurador da República Antônio José Daloia.

Atualmente, segundo a VLI, as contrapartidas públicas para a dragagem e a construção da cava estão sendo debatidas com a Cetesb. Entre as que já haviam sido decididas estava a comunicação com os pescadores e o repovoamento, por meio de pescados criados em viveiros e vindos de outras localizações, dos peixes que “eventualmente possam ter deixado o local por conta da ação dos materiais ao longo dos anos”. Outra contrapartida determinada é a construção de uma barreira de contenção em uma área em solo no terminal da Usiminas, que possui alto nível de metais que poderiam, com a chuva, contaminar novamente a bacia.

A Cava é Cova

A disparidade entre o discurso adotado pela VLI e a percepção dos moradores da região sobre o aumento da contaminação levou Marly Vicente, em 2018, a se associar ao pesquisador da Unifesp Jeffer Castelo Branco para fundar o movimento “A Cava é Cova”. Castelo Branco fundou há duas décadas a Associação de Combate aos Poluentes (ACPO) e se tornou o principal nome na luta contra a cava subaquática.

“Depois de tudo isso, percebemos que o Judiciário seria pouco e criamos nosso movimento social, começando a realizar audiências públicas”, explica Castelo Branco.

Organizadas pelo movimento, foram promovidas seis audiências ao longo do último ano. As mais recentes ocorreram nos dias 15 e 22 de fevereiro, reunindo ativistas ambientais, pesquisadores, políticos e representantes da comunidade de pescadores. A VLI e a Cetesb, compareceram apenas à primeira, em 4 de dezembro de 2017, e na última, ainda em fevereiro.

“Só queremos transparência, mas a empresa se coloca como se fosse a mocinha e nós os bandidos. Se colocam como se estivessem fazendo uma benfeitoria maravilhosa de limpar o estuário, mas na prática é diferente. Vemos o mangue sendo devastado, erodido, as aves e árvores do manguezal degradadas, a diminuição dos pescados. A responsabilidade não é só deles, mas a cava é um tiro de misericórdia na ação predatória”, opina Marly.

Na audiência na Câmara Municipal de Santos no dia 22 de fevereiro, o diretor de avaliação de impacto da Cetesb, José Eduardo Bevilacqua, afirmou que há “muita desinformação sobre a cava” e assegurou que ela não representa perigo.

“A cava já é uma tecnologia conhecida há muito tempo, internacionalmente”, afirmou. “Em poucas vezes na minha carreira na Cetesb vi tantos dados coletados para um projeto. Ele não altera a qualidade da água, da flora, da fauna e das comunidades. Contra fatos não há argumentos”, concluiu.

No dia 26 de fevereiro, foi a vez da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) convocar representantes da Cetesb e da VLI para prestar esclarecimentos sobre a segurança da obra nas comissões de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CAMDS) e Assuntos Metropolitanos e Municipais (CAMM). Na ocasião, Bevilacqua e representantes da VLI reiteraram que a cava não apresenta risco à população. No final de março, o movimento A Cava é Cova protocolou na Alesp um parecer técnico questionando novamente os argumentos da empresa.

Para MP, há indícios de improbidade administrativa

Para membros do Ministério Público responsáveis pela ação ambiental, toda a irregularidade do processo de licenciamento da dragagem e da cava subaquática sugere indícios de improbidade administrativa da Cetesb.

“Nada impede que, a partir dos dados coletados, também seja instaurada uma ação de improbidade administrativa. Acreditamos que isso pode ter acontecido porque observamos que a Cetesb, que deveria se pautar por critérios exclusivamente técnicos, não o fez. Isso nos preocupa bastante, porque a sociedade precisa ter certeza de que, quando o órgão ambiental autoriza uma ação, ela pode confiar”, destaca o promotor Daury de Paula.

A instalação da cava em terreno da União, com a falta de licenciamento adequado para tanto, impediu a possibilidade de um leilão público para a dragagem do canal de Piaçaguera, defendido pela Cetesb como limpeza ambiental. Com um leilão público, o governo poderia ter obtido mais vantagens do que a VLI ofereceu. “Ao não se fazer licitação, a empresa fugiu desse pagamento”, pontua De Paula, indicando outra incongruência financeira no processo.

Ambientalistas apontam, ainda, que, em um vídeo institucional de 2018, dois diretores da Cetesb, José Eduardo Bevilacqua e Ana Cristina Pasini da Costa, ambos responsáveis pela concessão da licença de operação da dragagem em 2017, aparecem defendendo o projeto da empresa.

“O empreendimento não foi feito para isso, mas agregou um ganho ambiental ao estuário, que sempre foi uma área contaminada, desde a ocupação industrial da Baixada”, afirmou Ana Cristina no vídeo.

“O uso de cavas confinadas, hoje, é uma solução tecnológica e ambiental das melhores. Você resolve o problema bem próximo do local de origem, com velocidade”, opina Bevilacqua no vídeo, referindo-se a um tipo de cava que nem sequer é utilizado pelo empreendimento.

Os dois diretores foram procurados na Cetesb para se pronunciarem sobre o vídeo, mas a companhia não respondeu à Pública.

Na opinião do professor Élio Lopes, o fato por si só já fere o princípio da impessoalidade, presente na Lei de Improbidade Administrativa.

Deputados Estaduais têm, no último ano, exigido a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Cetesb, para investigar supostos desvios de verbas na autorização da cava subaquática. O deputado estadual Luiz Fernando Teixeira (PT) afirmou, em fevereiro, estar coletando assinaturas necessárias para a instauração da CPI. Na audiência pública realizada na Alesp, Teixeira lembrou que nas barragens de Mariana e de Brumadinho, as empresas responsáveis também “deram tudo como seguro”. “Mas há quem diga que a cava é o que se tem de mais barato”, completou.

Procurada pela reportagem a Cetesb esclareceu, por nota, que o processo de licenciamento seguiu a legislação vigente e que “prestou todos os esclarecimentos à Justiça”.

Guardiões da natureza

Os pescadores da Vila em Cubatão não confiam na imparcialidade das inúmeras análises técnicas que a VLI afirma ter realizado.

De volta à vila de pescadores, a reportagem é levada até a região do Largo do Casqueiro, onde o perímetro laranja de silte marca a circunferência da cava, a alguns metros do manguezal. No topo das árvores, guarás-vermelhos, pássaro símbolo do litoral paulista, coloriam as copas. O tom fotogênico dos pássaros vem de sua alimentação, que tem como principal fonte o caranguejo. “É lindo, mas vai tudo acabar também”, lamenta o piloto do barco, o pescador amador José Flávio, conhecido como Sorriso, de 52 anos.

Em sua busca pelo entendimento dos impactos reais da dragagem do Canal de Piaçaguera e da cava subaquática, Marly conta que já chegou até mesmo a ouvir, de porta-vozes da VLI, que “a empresa não conversava com qualquer um”. “Oficialmente, a empresa nunca entrou em contato com o Instituto. São pessoas formadas, habilitadas, mas não é por que têm esse poder que podem passar por cima de uma comunidade desse tamanho”.

Questionada sobre a falta de transparência com a Vila dos Pescadores, a VLI afirma que entrou em contato com organizações formalmente organizadas. “Nossa equipe de comunicação local sempre esteve de portas abertas para conversar com a comunidade, na formalidade ou não”.

No entanto, a empresa afirmou que selecionou apenas algumas audiências públicas para participar. “Tentamos ter uma participação efetiva, em audiências com diversos públicos envolvidos. Pode ter a comunidade, mas se tem a presença do MP, entidades governamentais, poder legislativo, fóruns com a maior abrangência possível, há mais capilaridade”.

É um erro, na visão de Marly. Afinal, os pescadores são quem protege e luta pela preservação do meio ambiente necessário à pesca artesanal. “Os órgãos fiscalizam mais os pescadores artesanais do que as empresas. Os pescadores são guardiões da natureza, eles colaboram com a preservação, são conscientes. Não há ação predatória da nossa parte”.

A cava da VLI é considerada uma das maiores já feitas no mundo, com capacidade para receber até 2,4 milhões de metros cúbicos de sedimentos. Em diversos países da Europa e nos Estados Unidos, o procedimento da cava é proibido ou limitado a até 200 mil metros cúbicos.

É um erro, na visão de Marly. Afinal, quem protege e luta pela preservação do meio ambiente necessário à pesca artesanal são os pescadores.

Fonte:  Julia Dolce – Agência Pública