Em meio à Mata Atlântica, uma fêmea do pássaro tangará distingue o canto coral de um grupo de machos da sua espécie. É uma convocatória para o início de um espetáculo. Ela decide, então, voar em direção à cantoria e pousar no poleiro dos machos.
Sua chegada era o que os cantores estavam esperando para executar sua verdadeira arte: a dança. Não é uma apresentação individual, mas em grupo. A fêmea, de coloração verde, fica parada no galho, enquanto um grupo de dois a oito machos realiza uma coreografia previamente ensaiada.
Ao contrário da fêmea, eles são coloridos: corpo azul anil, asas e rosto pretos e uma coroa alaranjada.
É uma dança de cortejo. Se tudo der certo, o macho alfa do grupo vai ganhar a permissão da fêmea para copularem – os demais estão ali apenas para ajudar na conquista. Não é algo comum na natureza, já que, geralmente, o cortejo é feito por apenas um macho, em interesse próprio.
No primeiro ato da dança, os machos se alinham em fila indiana ao lado da fêmea. A seguir, o que está mais próximo dela faz um breve voo vertical, como um beija-flor. Por alguns instantes, o casal fica frente a frente. Enquanto isso, os demais machos caminham na fila indiana, ocupando o espaço aberto pelo primeiro.
Ainda de frente para a fêmea, o macho do movimento inicial voa em marcha ré, até chegar ao fim da fila, onde pousa. O segundo macho, então, repete o mesmo movimento que havia sido feito pelo primeiro. E assim sucessivamente, em movimentos que vão ficando cada vez mais rápidos. Esse carrossel pode levar de 12 segundos até 7 minutos.
O ato final é composto por um voo suspenso mais longo do macho alfa, com batimento frenético das asas, acompanhado de um som estridente e duradouro. A seguir, ele faz a mesma performance de costas e depois pousa em um galho levemente mais alto, de costas para a fêmea.
Já os demais machos se afastam da fêmea, observando-a fixamente, com a cabeça abaixada, como se estivessem fazendo uma reverência.
No total, a dança coletiva apresenta cinco movimentos diferentes – toda sincronizada com uma vocalização, cujo som se parece com um “wah” e que pode ter o efeito de excitar a fêmea – segundo pesquisa da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Por causa desse ritual, os tangarás são popularmente conhecidos como tangarás-dançarinos.
“É um dos rituais de reprodução mais elaborados de espécies que temos no Brasil”, explica Lilian Manica, professora do departamento de Zoologia da UFPR e membro da rede internacional Manakins Research Coordination Network – grupo que estuda espécies da família do tangará.
“É difícil explicar em palavras, porque é um comportamento muito diferente do que a gente já viu. A gente fica torcendo para os machos, torcendo para a fêmea gostar da apresentação. E fica com dó quando eles não conseguem”, diz a bacharel em biologia Laura Schaedler, que fez mestrado na UFPR sobre os tangarás.
Por ser única, a dança foi um dos cortejos de aves escolhidos para aparecer no primeiro episódio da série Our Planet, que estreou em março na Netflix. “É uma complexa dança de cortejo, capaz de entreter muito, porque os machos formam pequenas equipes, como artistas de trapézio”, disse o apresentador da série, David Attenborough, depois de ter sido questionado pela revista britânica TV Times sobre qual era seu momento favorito registrado nos episódios.
Equipes de dança e canto
As equipes de dança e canto são chamadas de “corte” do macho alfa. Há apenas um protagonista e seu séquito de subordinados. Ou seja, é uma espécie com uma rígida divisão hierárquica.
“Alguns dos machos da corte, inclusive, podem passar a vida inteira na posição subalterna, sem nunca conseguir ocupar o papel principal. A maior parte dos indivíduos copula muito pouco ou quase nunca. Poucos indivíduos conquistam a maior parte das fêmeas”, explica Laura Schaedler.
Esse comportamento limita o número machos que podem copular, o que parece contra-intuitivo do ponto de vista da reprodução da espécie.
“É uma questão muito intrigante para os cientistas. Uma hipótese para explicar porque alguns machos se submetem é que, ao dançarem por muito tempo na corte de um macho alfa, eles teriam mais chances de assumir seu papel quando ele morrer”, fala Laura.
Mas por que os machos subalternos não tentam criar suas próprias cortes? “É um mistério. Provavelmente, as fêmeas são muito detalhistas na escolha do parceiro”. Assim, elas não visitariam uma corte qualquer, apenas aquelas que demonstram um bom desempenho “artístico”.
Há outro comportamento dos tangarás machos que parece indicar que eles ensaiam antes de se apresentarem para uma fêmea. A maior parte das danças ocorre apenas entre eles, sem a presença de uma fêmea. Nesse aparente ensaio, um macho mais jovem desempenha o papel dela, ficando parado no galho, apenas observando os demais dançarem.
De certa forma, esse tangará jovem se parece com uma fêmea, já que seu corpo também é verde – a plumagem só fica azulada na vida adulta. O principal sinal de que se trata de um macho é a coroa alaranjada, já presente.
Mas os cientistas ainda não têm certeza se esse comportamento seria, realmente, um ensaio. “A gente não sabe se é para ensaiar ou para estabelecer uma hierarquia entre os machos”, explica a professora e pesquisadora Lilian Manica.
As fêmeas dos tangarás, por outro lado, não têm um comportamento de grupo. “Entre elas, não existe nenhum tipo de cooperação. Inclusive a plumagem verde das fêmeas, bem contrastante com a azul, preto e laranja dos machos, pode ser um resultado do estilo de vida solitário delas. É uma forma de se camuflar para cuidar da prole”, fala a pesquisadora Laura.
Apresentação solo e grand finale
Uma corte de tangarás machos pode repetir a mesma dança, para a mesma fêmea, uma vez depois da outra. Às vezes, após uma primeira apresentação, a fêmea não emite nenhum sinal – nem sim, nem não. Então, o grupo pode recomeçar o carrossel, em uma nova tentativa de impressioná-la.
Na primeira vez que Laura Schaedler assistiu ao ritual em meio à floresta, por exemplo, os machos executaram cerca de oito performances. No total, foram cerca de 20 minutos de apresentação. Não adiantou. A fêmea não ficou satisfeita e acabou abandonando o poleiro no meio de uma das danças.
Segundo pesquisa publicada em fevereiro deste ano no Journal of Ornithology, Lilian Manica e outros três pesquisadores identificaram que apenas uma de cada quatro apresentações coletivas resulta em um “sim” da fêmea. Nas demais, elas simplesmente vão embora.
“Essas exibições demonstram habilidades individuais e vigor, e geralmente requerem intensa atividade física, persistência e alto investimento de energia”, diz o texto. São qualidades avaliadas pela fêmea durante a apresentação – os pesquisadores ainda não sabem, porém, quais são os critérios que ela leva em consideração.
Já quando a fêmea sinaliza que está satisfeita com a apresentação, os machos subalternos a deixam a sós com o macho alfa. Este, então, passa a executar uma dança solo, com três passos diferentes, que culmina com uma rápida copulação.
Os tangarás-dançarinos habitam áreas de Mata Atlântica, do Brasil até a Argentina. Mas não é fácil presenciar uma dança-cortejo.
“É difícil presenciar um momento desses. Nas nossas pesquisas, nós identificamos previamente os poleiros onde os machos fazem a apresentação – que são fixos. E ficamos horas observando”, explica Lilian Manica. Em média, os pesquisadores visualizaram uma apresentação a cada 16 horas.
Uma das regiões onde a dança pode ser observada – e onde o documentário Our Planet foi gravado – é a Reserva Natural Salto Morato, em Guaraqueçaba, Paraná, localizada dentro do maior remanescente contínuo de Mata Atlântica no Brasil. O local, mantido pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, é aberto à visitação.
No Paraná, o período reprodutivo do tangará-dançarino vai de setembro a janeiro. O melhor momento para tentar observar a apresentação é o mês de novembro, no início da manhã.
“Toda vez que eu vejo a dança do tangará, parece que é a primeira vez, de tão impressionante que é. É um comportamento muito intenso, tanto em termos de movimentos, como de sons. As cores das aves também são muito chocantes. Você fica muito envolvido com aquilo que está assistindo”, narra a professora Lilian.
“Embora o tangará-dançarino não seja uma espécie ameaçada, é preciso ter cuidado para preservar seu habitat, já que sua reprodução exige um comportamento muito complexo. É importante que as pessoas saibam que há essa espécie tão fascinante vivendo na floresta para se sensibilizarem mais para preservar aquele ambiente”, considera Lilian Manica.
Fonte: BBC