Brasil e EUA lideram retrocessos ambientais, aponta estudo que abrange mais de um século

Parque Nacional de Iguaçu

Leis que diminuíram áreas de proteção estão entre os objetos de estudo

No mais completo estudo do tipo já realizado, um grupo de cientistas de diversas universidades estrangeiras, liderados pela ONG Conservação Internacional, analisou todos os atos governamentais que resultaram em redução de metragem, diminuição de restrições ou extinções de áreas de proteção ambiental em todo o mundo de 1892 a 2018.

O resultado do trabalho, que sai na edição desta sexta da revista científica Science, é preocupante: há uma tendência mundial de retrocessos ambientais, acentuada nas últimas duas décadas. E tal movimento é liderado por dois países de proporções continentais: Estados Unidos e Brasil.

“Antes campeões em conservação global, Estados Unidos e Brasil estão agora liderando uma tendência mundial preocupante de grandes retrocessos na política ambiental, colocando em risco centenas de áreas protegidas”, resume comunicado divulgado pela Associação Americana Para o Avanço da Ciência (AAAS, na sigla em inglês. “As mudanças regressivas buscam alterar ou remover legalmente o status de proteção e diminuir o tamanho das áreas de conservação natural.”

Nos 126 anos analisados, 73 países promulgaram 3.749 legislações do tipo, resultando na extinção de 519.857 quilômetros quadrados de áreas protegidas – uma área maior do que a Espanha – e no afrouxamento da proteção de outros 1.659.972 quilômetros quadrados – três vezes o tamanho da França.

Arara em área protegida da Amazônia

Afrouxamento de regulações na Amazônia se acentuou desde 2010

Reversão da proteção

De acordo com o biólogo e geocientista Bruno Coutinho, diretor de gestão do conhecimento da Conservação Internacional Brasil – e coautor do estudo -, é importante lembrar que a existência de áreas protegidas “não representa a garantia, para sempre, de proteção legal da biodiversidade e de serviços ecossistêmicos nelas gerados”.

“Dizendo de modo claro e simples: áreas protegidas não são para sempre”, disse à BBC News Brasil a bióloga e cientista social Rachel Golden Kroner, responsável pela área de governança ambiental e impactos da ONG nos Estados Unidos e principal autora do estudo. “Elas podem ser e estão sendo revertidas por meio de afrouxamentos de restrições, limites de área reduzidas e extinções completas.”

“A pesquisa mostrou que alterações na legislação ambiental dos países estudados podem comprometer a durabilidade e a eficácia das áreas protegidas, por recategorização, por redução de área ou por extinção completa”, afirmou Coutinho à BBC News Brasil.

Na maioria dos casos (62% do total), o afrouxamento legislativo está relacionado a práticas de extração de recursos e desenvolvimento industrial em grande escala – aqui incluindo para obras de infraestrutura, mineração e agricultura de commodities.

A pesquisa sugere a necessidade de uma discussão estratégica envolvendo os diversos atores que são impactados e impactam as áreas protegidas e seus entornos, compreensão dos efeitos e tratamento dos atos promulgados, bem como a própria manutenção da efetividade das áreas protegidas.

O levantamento ainda mostra uma tendência preocupante: 78% dos atos legislativos do gênero no mundo foram promulgados do ano 2000 para cá. “As reversões legais para áreas protegidas parecem estar se acelerando”, frisa Kroner.

“Respostas políticas são necessárias para salvaguardar os esforços de conservação”, acrescenta ela, destacando que tais processos devem ser “transparentes, baseados em evidências, participativos e responsáveis”. Kroner ainda recomenda que credores e doadores internacionais sempre considerem essa questão quando estiverem tomando decisões de financiamentos.

O caso brasileiro

A pedido da reportagem, a Conservação Internacional destacou os dados brasileiros do levantamento. No total, foram 85 atos legislativos promulgados – todos entre 1900 e 2017 -, afetando uma área de 114.856 quilômetros quadrados, o que equivale a praticamente metade do tamanho do Estado de São Paulo.

“Destes, 60 ocorreram na Amazônia”, pontua Coutinho. Em número, só a região Amazônia teve uma perda de pouco mais de 90 mil quilômetros quadrados de proteção apenas por culpa de mudanças da legislação brasileira.

“A maioria desses eventos, 42 deles, ocorreram após 2010 – grande parte em função de obras de infraestrutura”, acrescenta o biólogo Coutinho. “A causa mais prevalente foram decorrentes de autorizações de barragens de energia elétrica na Amazônia”, enfatiza Kroner.

Conforme dados compilados pela cientista, o Brasil é responsável por 87% dos retrocessos em áreas protegidas da Amazônia, em um levantamento que inclui os outros oito países amazônicos.

“Estamos assistindo a uma aceleração desses retrocessos no Brasil”, comenta ela. “Oitenta e quatro por cento das reduções aprovadas ocorreram desde o ano 2000.”

Entardecer no Rio Negro, Amazônia
Unidades de preservação foram afetadas por construção de hidrelétricas

Ministros

A bióloga e ambientalista Izabella Teixeira, ministra do Meio Ambiente entre 2010 e 2016, ressaltou que muitas vezes, para equilibrar interesses de diversas políticas públicas, sua gestão precisou alterar status de áreas protegidas – mas que o fez sob compensações considerando a mesma biodiversidade.

“Muitas vezes isso aconteceu”, afirmou à BBC News Brasil. “Por interesses sociais, programas que precisavam ser implantados. Por outro lado, ampliamos ou compensamos a área, como aconteceu no Parque Nacional dos Campos Amazônicos.” Em 2012, por medida provisória, a então presidente Dilma Rousseff alterou o limite de seis unidades de proteção para a construção de hidrelétricas na Amazônia.

Teixeira ressalta que, de modo geral, esse tipo de retrocesso em políticas de proteção pode ter diversas origens. “Precisaríamos identificar caso a caso para saber. Mas há natureza técnica, política e econômica”, comenta. “Do ponto de vista político, isso remete a uma situação de fragilidade e de não priorização da política ambiental. É muito comum que interesses econômicos sejam preponderantes a interesses da biodiversidade, mas isso é só um contexto: vejo como algo muito grave.”

Ministro do Meio Ambiente entre 2008 e 2010 e atualmente deputado estadual, o geógrafo Carlos Minc avaliou o cenário como “assustador”. “Reflete a força da bancada ruralista e a cumplicidade de vários governos estaduais”, disse ele, à BBC News Brasil.

“Entendo que as reduções têm sua principal origem no interesse econômico. Sobretudo da mineração e da pecuária. Também para obras e empreendimentos do agronegócio”, enumera. “Ganhou força o grupo político mais conservador e reacionário que despreza e desqualifica os ganhos ambientais e prega abertamente a extinção de leis e parques que protegem a biodiversidade.”

Papagaios em área protegida da Amazônia brasileira
Papagaios em área protegida da Amazônia brasileira

“Em nossa gestão no Ministério do Meio Ambiente, criamos ou ampliamos 54 mil quilômetros quadrados de parques e reservas extrativistas. Cada uma era uma guerra”, argumenta. Ele diz que, na esfera pública, há um verdadeiro cabo de guerra entre os ministérios na hora de criar áreas protegidas. “Eu solicitei um estudo sobre os ganhos econômicos dos parques e reservas para o turismo, o extrativismo, a água e o clima. Mas os demais ministérios geralmente não consideram o ganho ambiental, social, de biodiversidade e até de água para a agricultura.”

Confrontado com os dados, o jurista, historiador e diplomata Rubens Ricupero, ministro do Meio Ambiente entre 1993 e 1994, afirmou à BBC News Brasil que “não chega a surpreender que tenha havido redução significativa das áreas protegidas”. “Atribuo a tendência à pressão constante de interesses econômicos – madeireiros, de mineração, agropecuários, grileiros de terras públicas – e, em menor grau, à pressão social de trabalhadores sem-terra”, avalia ele.

“Manter as áreas protegidas nunca foi fácil em razão da enorme desigualdade existente entre os recursos de fiscalização e o poder de grupos econômicos regionais”, acrescenta Ricupero.

A BBC News Brasil questionou o atual ministro do Meio Ambiente, o advogado Ricardo Salles, sobre quais medidas ele julga pertinente serem adotadas frente aos dados apresentados pelo estudo. Até a publicação desta reportagem, entretanto, ele não havia respondido.

Ribeirinhos às margens do Rio Negro, Amazônia
Interesses econômicos foram apontados como grandes impulsionadores da degradação

Futuro

Ricupero teme que a tendência de retrocessos ambientais que o Brasil vem atravessando siga de forma ainda mais crítica. “O atual governo vem contribuindo para agravar o quadro pela posição pessoal e o exemplo altamente negativo do próprio presidente da República”, diz.

“O sistemático desmantelamento do sistema já precário do Ibama e do ICMBio estimula maiores violações dos espaços ainda protegidos e desencoraja a ação dos fiscais. Isso sem mencionar os numerosos projetos em tramitação no Congresso, que terão certamente impacto igualmente destruidor.”

O levantamento da Conservação Internacional demonstra que é preciso ficar atento às propostas em tramitação. “O estudo encontrou 60 eventos propostos, sendo metade deles na Amazônia”, pontuou Coutinho. No total, afetariam outros 200 mil quilômetros quadrados de bioma – uma área do tamanho do Paraná.

“A tendência é só piorar, dada a posição do presidente e do atual ministro, e à maior força da bancada ruralista”, acredita Minc. “A maior ameaça à biodiversidade é o projeto de lei que acabaria com a reserva legal, que pode ocasionar o maior desmatamento do planeta, da ordem de 1,3 milhão de quilômetros quadrados.” A área corresponde a dez vezes o tamanho da Inglaterra.

“Outros projetos de lei negam ao governo a iniciativa de criar parques ou demarcar terras indígenas. Há ainda os que liberam a caça, a lei do abate, até para espécies ameaçadas – que, segundo os autores, estariam ‘ameaçando os rebanhos nas fazendas'”, analisa o ex-ministro e agora deputado. “Os projetos que esvaziam o licenciamento ambiental representam outra grave ameaça aos rios e florestas e à saúde da população.”

O biólogo Coutinho afirma que “reversões na regulamentação devem ser amplamente discutidas”. “Estamos sempre dispostos a estabelecer diálogos para o desenvolvimento sustentável com base em dados e boa informação científica”, ressalta ele.

“O que os dados mostram é que a proteção do capital natural – entendido aqui como a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos – pode ser grande aliada do desenvolvimento econômico e social, respeitando-se direitos e interesses de diversos setores da sociedade uma vez que todos são beneficiários dos serviços ecossistêmicos”, defende. “A velocidade em que a biodiversidade vem sendo perdida pode comprometer a funcionalidade do sistema e consequentemente a humanidade no planeta.”

Fonte: BBC