Diante do corpo de grandes proporções caído à sua frente, na noite de segunda-feira (24 de junho), Maia permaneceu em silêncio. Hesitante, cheirou vagarosamente a amiga, que a acompanhou por mais de quatro décadas. Não havia mais sinais vitais em Guida. Mesmo sem respostas, permaneceu ao lado da companheira.
Juntas, as duas encontraram a liberdade há dois anos e oito meses, quando chegaram ao Santuário de Elefantes Brasil (SEB), em Chapada dos Guimarães (MT) – o primeiro lugar destinado à conservação de tais animais na América Latina.
As elefantas asiáticas, segundo estimativas do SEB, têm entre 45 e 47 anos. Elas passaram quatro décadas sofrendo maus-tratos em circos brasileiros. Em dupla, eram usadas em apresentações por diversas cidades.
Representantes do santuário acreditam que elas vieram ao país após serem traficadas da Tailândia, com o objetivo de serem usadas em espetáculos circenses.
“Elas chegaram ao Brasil ainda filhotes. Existe um método que chamam de sensibilização, no qual dizem que o quanto antes tirar o elefante da mãe, mais fácil será para que ele se torne submisso. Esses animais costumam ser espancados para obedecer ordens”, explica o biólogo Daniel Moura, um dos diretores do SEB.
No Brasil, apresentações de animais em circos são ilegais em 12 Estados. Há um projeto de Lei Federal em discussão há anos na Câmara dos Deputados, para que a proibição seja adotada em todo o país. Porém, a medida segue sem prazo para ser votada pelos parlamentares.
Quando faziam apresentações circenses, Maia e Guida chegavam a viajar acorrentadas e espremidas em um trailer com mais dois camelos. Em 2010, foram retiradas de um circo da Bahia pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e levadas a um sítio em Paraguaçu (MG), onde viveram por seis anos acorrentadas.
A relação entre as duas elefantas não era boa durante o período em que viviam na propriedade rural em Minas Gerais. Elas eram mantidas afastadas para que não brigassem. Segundo especialistas, o estresse era causado pela falta de espaço, que dificultava o convívio entre os animais.
Em outubro de 2016, as elefantas percorreram 1,6 mil quilômetros em contêineres, de Minas Gerais a Mato Grosso, para que chegassem ao SEB. Elas são as primeiras moradoras do lugar, localizado em uma antiga fazenda de gado de 1,1 mil hectares. O santuário se mantém por meio de doações feitas por simpatizantes do exterior e do Brasil.
Desde que chegaram ao SEB, que não é aberto ao público para evitar incômodo aos animais, o estresse das elefantas cessou e elas se tornaram grandes companheiras.
Guida estava abaixo do peso e ganhou 400 quilos no primeiro ano no santuário. Ela passou a ser brincalhona e a tristeza deu lugar à vontade de desbravar a natureza que antes parecia tão distante. Maia deixou o rótulo de “garota má” e se tornou mais dócil.
Juntas, caminhavam durante todo o dia pelos 29 hectares disponíveis no santuário – somente as áreas já adaptadas são liberadas aos animais, para que eles possam circular com o apoio necessário na mata. Na parte destinada às elefantas, há área médica, tanques de água e setor de alimentação para elas.
A redescoberta da vida
Guida e Maia redescobriram a vida somente na maturidade. Segundo especialistas, os elefantes se tornam idosos a partir dos 60 anos. Em casos de animais que ficaram em cativeiros, a expectativa de vida é menor e muitos consideram que devem ser tidos como idosos a partir dos 50 – período próximo às estimativas aplicadas às duas elefantas.
Os dois animais tinham muito em comum, mas também havia muita diferença. Maia costuma fazer movimentos bruscos e involuntários. Sutilmente desajeitada, ela arranca risos de quem a acompanha.
Guida era considerada mais tranquila. Ela costumava comer sempre três folhas de uma árvore, duas de outra e uma de palmeira.
“Ela é uma dama”, diziam aqueles que a conheciam. Em contrapartida, Maia é pouco exigente com comida.
Apesar das diferenças entre elas, o presidente do SEB, o americano Scott Blais avalia a relação das duas como extremamente positiva.
“Elas eram praticamente inseparáveis e celebravam suas vidas dentro do santuário, emitindo alguns trombeteios de alegria”, comenta.
Em dezembro passado, elas receberam a companhia da elefanta asiática Rana, que também sofreu maus-tratos em circos durante décadas. Logo se tornaram amigas.
O SEB tenta trazer outros elefantes do Brasil e de outros países da América do Sul, que tenham sido vítimas de exploração, mas ainda não há prazo para que novos animais cheguem ao santuário.
“Estamos resolvendo as questões burocráticas, que levam tempo”, justifica Daniel Moura.
O adeus a Guida
Guida fazia uma trilha na tarde da última segunda-feira quando ficou presa em um trecho do percurso. Os veterinários a auxiliaram. A fraqueza e o cansaço dela surpreenderam, pois a elefanta sempre foi considerada uma grande desbravadora e costumava atravessar diversas áreas do SEB.
Em certo momento, ela se deitou no chão, como se precisasse descansar. Conforme os representantes do SEB, os veterinários aplicaram soro intravenoso nela, a medicaram e colheram amostras de sangue. Depois, a deixaram descansar.
“Após algum tempo, a respiração dela começou a oscilar até que simplesmente parou de respirar”, relata a americana Kat Blais, vice-presidente do santuário. Silenciosamente, sem emitir sinais de dores, Guida morreu. “Ela se foi em paz. Não esperávamos que ela se fosse”, relata Kat.
A morte da elefanta causou surpresa nos especialistas que a acompanham no SEB. Segundo Scott, que trabalha há mais de trinta anos com elefantes, as décadas de maus-tratos colaboraram para fragilizar a saúde do animal.
“Tragicamente, os danos cumulativos causados pela negligência do cativeiro podem criar impactos devastadores e inesperados na vida dos elefantes”, afirma.
“Impossível imaginar que Guida não estará mais lá quando formos cuidar das meninas. Muito difícil aceitar que seus trombeteios infantis do dia anterior foram os últimos que ouvimos”, lamenta Kat.
Maia avistou a amiga caída no solo e se aproximou, hesitante. Conforme Kat, a amiga de quatro décadas manteve a tromba distante do corpo de Guida, a princípio. Depois, a cheirou vagarosamente e se afastou.
“Após alguns momentos tocando e cheirando Guida, ela conseguiu entender o que aconteceu”, diz a vice-presidente do SEB.
“Esse processo [de luto] será particularmente difícil para a Maia. Ela precisará de tempo para se adaptar. Não há dúvida de que ela e todo nós carregaremos, em nossos corações, a alegria pura e plena que a Guida dividiu com todos que tiveram a chance de conhecê-la”, diz Scott.
Maia permaneceu calada e desorientada diante da partida de Guida. Os veterinários a deixaram sozinha por um tempo, diante do corpo da amiga. De longe, Rana acompanhou a cena, em silêncio.
“É devastador olhar para Maia e saber que ela perdeu sua melhor amiga poucos anos depois de ter, realmente, a encontrado”, lamenta Kat.
Na madrugada de terça-feira (25), Maia se manteve próxima do corpo da amiga. Durante o dia, por diversas vezes, em silêncio, observou o corpo. Calada, Rana também se aproximou do corpo de Guida várias vezes.
“Permitimos que elas ficassem com Guida durante a noite, tendo o tempo necessário para prestar suas homenagens e se despedirem dela. É comum que elefantes honrem a morte dos membros de sua família”, afirma Scott.
Maia continuou perto da amiga morta durante a madrugada desta quarta-feira (26). Ela apenas se afastou após a chegada de uma equipe de patologistas da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), que foi ao santuário para fazer a necropsia do corpo de Guida.
Os especialistas irão investigar as causas da morte da elefanta. Não há previsão para os resultados dos exames.
Os representantes do SEB comentam que ainda não há suspeitas sobre a causa da morte de Guida.
“Ela estava muito bem dias antes. O falecimento dela foi uma surpresa. O que imaginamos é que há impacto do período em que ela sofreu maus-tratos e exploração”, diz Daniel Moura.
Nos próximos dias, o corpo de Guida será enterrado em uma área do santuário.
Fonte: BBC