Mais de 120 milhões de pessoas sofrerão com uma nova onda de pobreza, deslocamentos e fome que pode acontecer até 2030, em decorrência de ações insuficientes dos governos no combate ao aquecimento global, alertou a ONU em um relatório lançado na última terça-feira (25/06). Países e regiões mais pobres estão mais vulneráveis a este colapso. “As mudanças climáticas ameaçam desfazer o progresso dos últimos 50 anos em desenvolvimento, saúde global e redução da miséria”, observou Philip Alston, autor do estudo e relator especial da ONU em pobreza extrema e direitos humanos.
Alston classifica o provável cenário como “apartheid climático”. Os mais ricos pagariam para escapar do superaquecimento, da fome e de conflitos, enquanto os mais pobres, responsáveis por uma pequena fração das emissões de gases de efeito estufa, não teriam a mesma condição e sofreriam com os impactos do colapso do clima.
Para o relator, muitos países têm ignorado os alertas de cientistas e ambientalistas sobre o aquecimento global e, atualmente, caminham na direção contrária. “No Brasil, o presidente Bolsonaro prometeu abrir a floresta amazônica para a mineração, acabar com a demarcação de terras indígenas e enfraquecer organizações e proteções ambientais”, aponta.
Alston também destacou a China, que planeja se tornar independente de combustíveis fósseis, porém exporta usinas de carvão; e os Estados Unidos, cujo presidente Donald Trump nomeou lobistas para cargos importantes e atende aos interesses da indústria carvoeira, além de promover retrocessos na legislação ambiental e ignorar a climatologia.
O Acordo de Paris, em 2015, foi o passo histórico mais importante no combate ao aquecimento global, considera Alston. Entretanto, ele observa que as metas atuais limitariam o aumento da temperatura em apenas 3ºC até 2100. As ações, segundo o pesquisador da ONU, deveriam ser triplicadas para limitá-lo em 2ºC e quintuplicadas para mantê-lo em 1,5ºC – o objetivo estabelecido na Convenção das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas (COP-21), na capital francesa.
Na noite da quinta-feira passada (27/06), o presidente da França, Emmanuel Macron, afirmou que não negociaria com países que não seguissem os compromissos firmados na COP-21. “Se o Brasil deixar o Acordo de Paris, não poderemos assinar acordos comerciais com eles”, disse o francês em Osaka, Japão, para a reunião da cúpula do G20. Em um encontro informal nesta sexta-feira, Bolsonaro garantiu a Macron que o país continuaria no acordo. À tarde, o Mercosul e a União Europeia anunciaram um acordo de livre-comércio cujas negociações se estendiam por 20 anos.
A negociação sobre o fortalecimento das metas deve acontecer em dezembro deste ano, durante a COP-25 em Santiago, no Chile. Professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), Paulo Artaxo acredita que haverá resistência dos países produtores de petróleo, dos Estados Unidos, do Brasil e de outros governos de extrema direta.
“Para atingir a meta de 1,5ºC, o IPCC prevê que a partir de 2020 as concentrações de gases de efeito estufa têm que cair 5% ao ano, até serem zeradas em 2050”, observa Artaxo. “Isso requer uma mudança radical em todo o processo de produção e consumo de energia e é uma questão de políticas públicas. Mas o IPCC deixa claro: do ponto de vista da ciência, ou é isso, ou teremos um clima extremamente menos amigável do que hoje para as nossas próprias atividades econômicas.”
Esforços insuficientes
Em 19 de junho, o Climate Action Tracker (CAT), uma análise climática produzida por três institutos de pesquisa independentes, divulgou seu relatório semestral sobre as ações dos países de acordo com os compromissos do Acordo de Paris. O anúncio aconteceu na reunião preparatória da ONU em Bonn, na Alemanha, que durou duas semanas e terminou na última quinta-feira (27/06).
O CAT monitora 32 países que representam 80% das emissões globais de gases de efeito estufa. O consórcio independente identificou que apenas o Marrocos e a Gâmbia possuem compromissos que manteriam o aumento da temperatura média global abaixo de 1,5ºC. Estados Unidos, Rússia, Arábia Saudita, Turquia e Ucrânia apresentam metas “criticamente insuficientes”, que levariam o mundo a um aquecimento superior a 4ºC. O Brasil, por sua vez, demonstra propostas “insuficientes”, que correspondem a elevação da temperatura entre 2ºC e 3ºC.
“Com as atuais políticas implementadas [no Brasil], as emissões em grande parte dos setores devem continuar e aumentar até 2030, e o marcante progresso na mitigação das emissões de desmatamento observada na última década foi interrompido”, analisou o consórcio. “Bolsonaro e seus ministros têm expressado publicamente oposição às políticas climáticas existentes no Brasil e têm proposto legislações que enfraquecem as estruturas institucional e legal do combate ao desmatamento e outros crimes ambientais, assim como reformas que fragilizam substancialmente a participação da sociedade civil, incluindo grupos ambientalistas, na tomada de decisões e no monitoramento da implementação de políticas.”
O documento do CAT também destaca a nomeação do chanceler Ernesto Araújo – que considera o aquecimento global uma conspiração marxista – ao Ministério das Relações Exteriores, assim como o corte de 95% no orçamento para políticas climáticas no Ministério do Meio Ambiente. O consórcio sugere ainda que o país fortaleça a legislação florestal e incorpore à agenda nacional planos de baixo carbono que já existem para a agricultura, mineração, indústrias siderúrgica e manufatureira e setores energético e de transportes.
“O maior desafio ao desenvolvimento de qualquer nação no século 21 diz respeito aos inúmeros aspectos que já afetam a qualidade de vida das pessoas – segurança alimentar, hídrica, energética, mobilidade urbana, qualidade de vida nas cidades”, pontua Carlos Rittl, secretário-executivo Observatório do Clima. “Há também impactos sobre a saúde, seja pela variação de temperatura, da precipitação, de umidade, da disseminação de vetores ou doenças provocadas por excesso ou falta de chuva, ou como consequência de eventos extremos que têm, infelizmente, provocado dezenas de mortes esse ano no Brasil.”
Rittl participou da mesa do CAT durante a conferência da ONU na Alemanha. Para o ambientalista, a agenda do clima é uma questão estratégica e precisa ser encarada como de Estado, e não de governo. “Em cinco anos, o sistema global terá incorporado a precificação do carbono”, avalia Rittl. “É muito clara a migração de investimentos em energias sujas para as limpas, apesar do lobby da indústria de combustíveis fósseis e do ruralismo arcaico. Estamos falando de eficiência econômica e competitividade.”
O Brasil é o 13º maior emissor de gases de efeito estufa do planeta, conforme o Global Carbon Atlas. Em Paris, o país estabeleceu como objetivos zerar o desmatamento ilegal, restaurar 12 milhões de hectares de florestas até 2030 e fortalecer o manejo sustentável da vegetação nativa. A posição tropical confere ao Brasil um papel importante no sequestro CO2 da atmosfera, principal finalidade dos compromissos nacionalmente determinados, explica Artaxo. “A questão é que não vemos nenhum esforço sobre como isso será feito e viabilizado.”
Antes mesmo do Acordo de Paris, o governo brasileiro instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima em 2009, como compromisso voluntário aos esforços globais de redução das emissões entre 36,1% e 38,9% até 2020. Também estabeleceu como meta limitar o desmatamento anual na Amazônia em 3.925 km² até o ano que vem. De 2005 a 2012, a redução da supressão vegetal contribuiu para queda de 41,1% nas emissões brasileiras. Contudo, o cenário mudou de direção quando o Código Florestal foi modificado em 2012. O desmatamento ilegal voltou a aumentar e alcançou 7.900 km² de agosto de 2017 a julho de 2018, conforme o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“Agora não temos uma implementação adequada das políticas”, analisa Rittl. Para ele, isso afasta o Brasil de cumprir com as metas voluntárias e os compromissos do Acordo de Paris. “Quando modificado em 2012, o Código Florestal forneceu anistia para quem havia desmatado antes de 2008 e tirou a necessidade de recomposição de áreas suprimidas ilegalmente. Isso, atrelado a muitos sinais contraditórios dados pelos governos Dilma, Temer e, principalmente, Bolsonaro, incentiva a expansão da agropecuária a qualquer custo.”
Impactos atuais
Para Artaxo, o Brasil é uma das nações mais vulneráveis às mudanças climáticas por se situar entre os trópicos e possuir um extenso litoral. O Nordeste, semiárido, corre risco de se tornar uma região completamente árida daqui 30 a 40 anos, ele explica. Cidades costeiras, como Santos, Recife e Salvador, podem sofrer com a elevação do nível do mar, em decorrência do derretimento das geleiras. Mas há efeitos que já são sentidos no país.
Uma das faces mais visíveis das mudanças climáticas é o aumento da frequência de eventos extremos, como fortes chuvas e estiagens prolongadas, analisa Artaxo. “Neste ano, só a cidade do Rio de Janeiro teve quatro gigantescas inundações, em dias com mais de 100 mm de chuva e prejuízos socioeconômicos enormes para a população mais vulnerável, além de custar vidas. As inundações ocorrem na maior parte dos grandes centros urbanos, como também é o caso de São Paulo.” Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1.726 (31%) municípios enfrentaram enchentes de 2013 a 2017. Já 2.706 (48,6%) cidades sofreram com secas severas.
“Precisamos de políticas públicas para esclarecer a população sobre os riscos que temos hoje com as mudanças climáticas”, acredita Artaxo. “Na região central do Nordeste que se tornará árida, por exemplo, as pessoas terão que ser deslocadas para outros lugares. Se o governo não agir, esse processo vai ocorrer de maneira desordenada.”
Em 30 de maio, Artaxo participou de uma audiência sobre mudanças climáticas no Congresso Nacional, promovida pelas comissões de Relações Exteriores e de Meio Ambiente do Senado Federal. Para o professor da USP, um papel fundamental da ciência e da academia é fornecer as informações aos políticos que, como tomadores de decisão, tem o dever de implementar medidas mitigatórias.
Artaxo acredita que apenas uma fração pequena de deputados e senadores ainda tem alguma conexão com as necessidades da sociedade brasileira hoje, enquanto “vemos um Judiciário completamente descolado da população e um Executivo absolutamente atrelado aos interesses do grande capital, da indústria, dos latifundiários e dos ruralistas”.
O Brasil propôs o mecanismo de desenvolvimento limpo na década de 1990, organizou a Rio+20, esteve à frente no Protocolo de Nagoia, em 2010. Na COP de 2015, apresentou as metas mais ambiciosas para 2030, entre os países em desenvolvimento com maiores padrões de emissões, avalia o climatologista Carlos Nobre, que também integrou o debate no Senado e atualmente é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP. “Em seis meses, o país abriu mão, espontaneamente, de uma das pouquíssimas áreas em que tinha protagonismo internacional. É jogar no lixo um enorme status que o país adquiriu em décadas como grande líder de todas as negociações sobre mudanças climáticas.”
Encontros pelo clima
Ainda em novembro de 2018, Bolsonaro anunciou a desistência do Brasil em sediar a COP-25. Na época, o presidente eleito também planejava transformar o Ministério do Meio Ambiente (MMA) em uma secretaria da pasta da Agricultura, além de cogitar sair do Acordo de Paris. Mesmo com 174 países e a União Europeia como signatários, Bolsonaro acredita que o acordo é uma ameaça à soberania nacional.
Já em 13 de maio, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, declarou o cancelamento de Salvador (BA) como sede da Semana do Clima da América Latina e do Caribe. Primeiro, alegou em entrevista ao O Globo que não fazia sentido receber o evento uma vez que o país não sediaria mais a COP-25. No dia seguinte, Salles ironizou o encontro ao blog da jornalista Andréia Sadi, no G1: “Vou fazer uma reunião para a turma ter oportunidade de fazer turismo em Salvador? Comer acarajé?”
O prefeito da capital baiana, Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM), e outros 400 da Frente Nacional de Prefeitos (FNP)repudiaram a decisão e manifestaram-se favoráveis ao evento. “Os governos locais e regionais desempenham papel crucial nos esforços nacionais e globais pela redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE), na manutenção do aumento das temperaturas abaixo dos 2ºC e na adaptação aos efeitos das mudanças climáticas. Por isso, a FNP entende a importância de receber um evento como esse na primeira capital do país e solicita que o governo federal apoie, perante a ONU, sua realização em Salvador, mesmo que sem disponibilizar recursos financeiros”, dizia a nota oficial publicada em 16 de maio. No dia 19, Salles voltou atrás e confirmou a participação federal na conferência em Salvador. A Semana do Clima acontecerá de 19 a 23 de agosto.
“Todas as políticas públicas a nível global são discutidas e aprimoradas em reuniões da ONU. É o único órgão internacional com mandato para organizar o desenvolvimento do planeta como um todo, inclusive na questão ambiental”, explica Artaxo. O professor destaca que a ONU estruturou os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, além de patrocinar as convenções do clima e os estudos do IPCC.
Carlos Nobre observa que grande parte das COPs envolve o progresso incremental das políticas climáticas, como a do Chile, enquanto outras são disruptivas, a exemplo de Paris. “A cada COP avança-se um pouco no marco legal, dirimem-se dúvidas”, observa. Além de avaliar o andamento dos compromissos assumidos na COP-21 e renegociar metas mais ambiciosas, o cientista ressalta a importância da implementação do Green Climate Fund. “Para 2020, havia a promessa de 100 bilhões de dólares por ano, mas os Estados Unidos puxaram o tapete. O dinheiro é fundamental para preparar os países em desenvolvimento e, principalmente, os mais pobres, para seguirem uma matriz de desenvolvimento de baixa emissão, além da adaptação dos países mais vulneráveis.”
A Semana do Clima, por sua vez, integra uma agenda complementar às COPs, que “busca demonstrar que há soluções ganhando tração, mercado e escala no mundo, seja nas políticas públicas, na inovação tecnológica, negócios, na produção do conhecimento”, acrescenta Rittl. “Os encontros permitem que estados e municípios do mundo que investem nas próprias políticas climáticas demonstrem o desenvolvimento de renováveis, do melhor uso do solo, da adaptação ao clima, da gestão de resíduos, da inovação tecnológica. São mais voltados para as soluções.”
Fonte: Kevin Damasio – National Geographic