UMA NOVA FORMA de medir como algumas geleiras derretem abaixo da superfície da água revelou algo surpreendente: algumas geleiras estão derretendo 100 vezes mais rápido do que acreditavam os cientistas.
Em um novo estudo, publicado na revista científica Science, uma equipe de oceanógrafos e glaciólogos apresenta uma novidade para o conhecimento das geleiras de maré — geleiras que desembocam no oceano — e seus processos dinâmicos.
“Eles descobriram que o degelo que ocorre hoje é bastante diferente das suposições anteriores”, conta Twila Moon, glacióloga do Centro Nacional de Dados sobre Neve e Gelo da Universidade do Colorado em Boulder, que não participou do estudo.
Uma parte do desmembramento e derretimento glacial consiste em um processo normal que ocorre nas geleiras durante a transição das estações, do inverno para o verão, e também durante o verão. Contudo o aumento da temperatura acelera o derretimento das geleiras em todo o mundo, principalmente em função do degelo que ocorre na superfície da geleira, mas também do degelo que acontece sob a água.
As geleiras podem se estender por centenas de quilômetros abaixo da superfície, explica Ellyn Enderlin, glacióloga da Universidade Estadual de Boise, que não participou do estudo. Constatar índices maiores de degelo sob a água indica que as “geleiras são muito mais sensíveis às mudanças que ocorrem no oceano do que se pensava”. Compreender os processos de derretimento e calcular a velocidade do degelo com precisão é essencial para desenvolver um planejamento para a elevação do nível do mar.
“Só o fato de conseguirmos obter esses dados já é bastante empolgante”, diz o principal autor do estudo, David Sutherland, oceanógrafo da Universidade de Oregon. “Não tínhamos 100% de certeza de que daria certo”.
O monitoramento de geleiras específicas por um longo período pode oferecer aos pesquisadores — e a alunos do Ensino Médio — uma ideia do derretimento causado pelas mudanças climáticas. Alunos da Petersburg High School, escola de Ensino Médio localizada próximo de LeConte Bay, começaram a coletar dados sobre a posição final da geleira em 1983. A observação sobre o recuo da geleira realizada pelos alunos há alguns anos alertou os cientistas da University of Alaska Southeast, despertando interesse em entender melhor o processo de derretimento.
Medição de massas de gelo em processo de derretimento
LeConte é a geleira ideal para o estudo, pois é bastante acessível por ser uma geleira de maré, de acordo com Sutherland. Por ser um ambiente complexo, o projeto exigiu diversas linhas de dados e, para tanto, oceanógrafos e glaciólogos coletaram os dados simultaneamente na geleira.
Calcular a velocidade de derretimento da geleira exige mais sutileza do que medir um cubo de gelo derretendo em um copo de água. No caso da geleira, é preciso determinar a velocidade da movimentação do gelo em direção ao fiorde, além da proporção que está derretendo e da proporção que está se desprendendo ou se desmembrando.
Era algo “que eu acreditava ser bastante simples, e ao colocar no papel, me pareceu adequado”, ri Sutherland. Mas adentrar com um barco em um fiorde, onde a Geleira LeConte se encontra com o mar, é complicado mesmo em um dia de clima bom. Os cientistas passaram semanas a bordo do barco trabalhando 24 horas por dia, alternando-se em turnos de 12 horas cada.
Cabras-montanhesas subiam as colinas, baleias passavam pelo fiorde e aves marinhas mergulhavam no mar. “Quando não estávamos desejando um clima melhor… era um local maravilhoso para estar”, conta Sutherland.
A partir da embarcação MV Stellar, de 25 metros, os oceanógrafos realizaram análises com sonares submarinos, que se parecem com os instrumentos utilizados para medir a profundidade do oceano. Em vez de direcionar o sonar para o leito oceânico, eles inclinaram o dispositivo para coletar imagens em 3D da parte submersa da face da geleira.
Em seguida, os oceanógrafos determinaram a velocidade na qual o sonar atravessou a água do fiorde e puderam fazer os cálculos com maior precisão. Outras medições “básicas” das propriedades da água, como a salinidade e a temperatura, também foram necessárias, explicou Sutherland. Suspender instrumentos supercaros na lateral do barco gerou momentos de tensão.
Os cientistas repetiram suas observações durante dois verões, obtendo diversas análises em cada viagem.
“Escanear a face de uma geleira diversas vezes durante o verão não foi uma tarefa fácil”, conta Eric Rignot, glaciólogo da Universidade da Califórnia em Irvine, que não participou do estudo.
Muito gelo na frente da geleira significa que “o barco não consegue atravessar o gelo”, explica Rignot. Consequentemente, algumas vezes o barco teve de ser recuado rapidamente da face da geleira, enquanto os cientistas torciam para que o equipamento não tivesse quebrado e caído na água.
Simultaneamente, uma equipe de glaciólogos ficou acampada em uma colina observando a geleira. O papel deles era cuidar de um radar que media o movimento natural da geleira. Câmeras com o recurso time-lapse foram utilizadas para medir o fluxo da geleira e informar a velocidade na qual o gelo se movimentava para o oceano, conta Jason Amundson, glaciólogo e coautor do estudo da University of Alaska Southeast.
O gelo glacial acelera à medida que o gelo se aproxima da face da geleira, no local onde desemboca no oceano, diz Moon. Ela compara o movimento do gelo com o ato de apertar um tubo de pasta de dentes: quando a pasta de dentes chega ao fim, não há nenhuma sobra da pasta bloqueando a passagem, portanto, ela se movimenta de forma mais rápida. O gelo próximo da face da geleira pode se mover 22 metros por dia, e constatar essa velocidade é essencial para calcular o derretimento.
A partir dessa base de dados, os pesquisadores puderam calcular a velocidade total de degelo da parte submersa da geleira: duas ordens de grandeza acima do esperado. Rignot disse que um dos modelos teóricos, utilizado durante cerca de 20 a 30 anos, era conhecido como uma versão simplificada que não funcionava perfeitamente.
Em uma geleira de maré ocorrem diversos processos de degelo, por isso o mistério do derretimento foi solucionado pelos cientistas a partir de vários ângulos. Se um grande bloco de gelo estivesse em uma banheira e nada mais estivesse acontecendo ali, ele simplesmente derreteria a uma velocidade normal.
Quando uma coluna de água doce proveniente do derretimento da superfície entra no fiorde, ela atinge o fiorde próximo da face da geleira. A água doce, que é mais leve, sobe para a superfície e em seguida destrói, ou desgasta, a face da geleira.
Posteriormente, acontece o degelo submarino, que ocorre sempre que o oceano toca a superfície da geleira. O mais bacana desse novo método, de acordo com Sutherland, é que é possível marcar o local exato onde ocorre o degelo.
“Uma quantidade considerável de gelo que é empurrada para o oceano derrete imediatamente ao entrar em contato com a água salgada, portanto, a geleira perde de fato uma grande parte da massa devido a esse degelo”, explica Enderlin.
“Uma grande parte do gelo que vai para o oceano derrete devido à água morna do oceano”, afirma Amundson.
Eles calcularam que o derretimento da geleira sob a água ocorreu a uma velocidade de cerca de 1,5 metro por dia em maio e de até 4,8 metros por dia em agosto. No final da mesma estação, a água mais quente aumentou o degelo sob a água. Normalmente abaixo de 6 graus Celsius, a água na LeConte Bay é quente em comparação ao gelo, e até mesmo em relação a outros fiordes do mundo.
E as outras geleiras?
O sucesso desse novo método “abre possibilidades para que pesquisadores realizem o mesmo em todo o mundo”, diz Sutherland. Especificamente, as constatações da pesquisa da Geleira LeConte no Alasca podem ser utilizadas para estudar as geleiras da Groenlândia e da Antártica. “O degelo sob a água pode ser importante em qualquer lugar do mundo”, diz Enderlin.
Somente 50 das cerca de 100 mil geleiras do Alaska são geleiras de maré, e elas são as maiores que existem. Esse tipo de “geleira pode mudar muito mais rapidamente do que as geleiras de vale em função dos processos que ocorrem exatamente onde a geleira desemboca no oceano”, explica Amundson.
Inicialmente um grande manto de gelo, a Groenlândia possui cerca de 200 geleiras originadas em mantos de gelo, mas nelas, a água é muito mais gelada em comparação à temperatura de LeConte Bay.
O derretimento das geleiras do Alasca ocorre inicialmente na superfície, pois poucas delas desembocam no oceano, explica Rignot. Na Groenlândia, ocorre o degelo de superfície, bem como o derretimento das geleiras de maré. Mas, na Antártica, esse degelo submarino é o único tipo de degelo que existe, portanto, compreender os processos que ocorrem fora do Alasca é importante.
Se você tem um clima com temperaturas mais elevadas, como nas mudanças climáticas, conta Sutherland, a temperatura da água e do ar aumentam e consequentemente ocorrerá mais degelo. Pode ser difícil desvincular esse tipo de degelo do derretimento natural.
“Essas observações claramente nos mostram que ainda há algo faltando”, diz Moon. “Certamente é um grande motivo para continuarmos o estudo”, para melhor compreendermos como esses sistemas funcionam.
Felizmente, ainda há tempo para que os cientistas descubram isso.
“Essas geleiras não vão sumir tão rapidamente… elas ainda estarão por aqui nas próximas décadas”, afirma Sutherland.
Fonte: National Geographic