Em junho de 2008, na sede da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), em Roma, na Itália, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez uma defesa apaixonada do etanol brasileiro. Segundo ele, o biocombustível transformaria o Brasil no maior produtor de combustíveis renováveis do mundo, uma “Arábia Saudita Verde”, em alusão ao país árabe que lidera a produção mundial de petróleo.
Mas a história não se desenrolou como o ele previra. Uma série de acontecimentos – entre os quais o congelamento dos preços da gasolina implementado pelos governos petistas como forma de tentar segurar o aumento da inflação – desidratou a agroindústria canavieira. Dezenas de usinas foram fechadas, e outras tantas pediram falência ou entraram em recuperação judicial. Outras, por fim, ainda estão sob risco.
O resultado foi desastroso, e o combustível perdeu o status de nova estrela da política energética brasileira.
Mas, nos últimos anos, o etanol brasileiro ensaiou uma recuperação, impulsionado pelo aumento da competitividade frente à gasolina e pela queda vertiginosa no preço mundial do açúcar devido aos subsídios da Índia, o maior produtor mundial. Além disso, em 2017, o governo brasileiro elevou o porcentual de álcool na gasolina de 25% para os atuais 27%.
Na safra passada, o setor bateu um recorde – 65% da oferta da cana de açúcar foi destinada à produção do biocombustível –, e a próxima não deve ser diferente.
Mas há uma nova ameaça no horizonte: a possibilidade de o governo Jair Bolsonaro (PSL) zerar as tarifas para o etanol de milho, importado dos Estados Unidos.
Impacto da aproximação bilateral
Em agosto de 2017, ainda sob o governo Michel Temer (MDB), o Brasil aplicou uma taxa de 20% sobre as importações de etanol para volumes que excedessem 600 milhões de litros. A medida, que vigoraria por 24 meses, tinha um objetivo claro: frear a entrada do produto dos Estados Unidos, que vinha inundando o mercado brasileiro. Até então, o Brasil não taxava a importação desse produto.
Agora, com a proximidade do fim do prazo, o governo discute internamente se renova a cota que vence no fim deste mês ou se zera de vez a tarifa. A primeira opção é defendida pelo Ministério da Agricultura. Já a segunda, pelo da Economia.
Se nada for feito, hipótese mais remota, a tarifa de 20% volta a ser aplicada à totalidade do etanol importado. Mas essa alternativa poderia comprometer as negociações em curso de um acordo bilateral com os Estados Unidos envolvendo o trigo americano e o açúcar e o etanol brasileiros, previsto para sair em outubro.
Mas a liberação do mercado brasileiro para o etanol americano preocupa parte dos produtores, especialmente das regiões Norte e Nordeste, que produzem menos do que o Centro-Sul. Por questões econômicas e logísticas, a região acaba sendo o principal destino do etanol americano.
“O impacto seria muito negativo, especialmente para o Nordeste. De fato, temos uma participação muito menor do que o Centro-Sul em termos de produção, mas empregamos 35% da força de trabalho”, diz à BBC News Brasil Renato Cunha, presidente do Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool no Estado de Pernambuco (Sindaçúcar-PE).
Segundo ele, o Brasil é autossuficiente na produção de etanol, patamar que dispensaria a importação de álcool. “As distribuidoras acabam preterindo o etanol produzido no Nordeste em relação ao importado para fazer dinheiro. E essa operação nunca teve um reflexo positivo no bolso do consumidor brasileiro. Pagamos na bomba a mesma coisa por um etanol que não é produzido aqui”, afirma.
Cunha diz que a proposta de zerar a tarifa sobre o etanol americano, caso seja adotada, deveria ter embutida a reciprocidade. O principal pleito, nesse sentido, é um maior acesso do açúcar brasileiro ao mercado americano.
“As cotas americanas para importação dessa matéria-prima são muito modestas, de cerca de 150 mil toneladas. Isso para um país como o Brasil, que produz 30 milhões de toneladas de açúcar por ano, é irrisório”, assinala.
Em guerra com a China, EUA se voltam para o Brasil
Desde 2016, o Brasil é o maior comprador do etanol dos Estados Unidos. Passou à frente do Canadá, segundo dados da Administração de Informação de Energia (EIA, na sigla em inglês). Os produtores americanos haviam expandido a capacidade apostando no apetite da China, mas a guerra comercial do presidente Donald Trump com o gigante asiático desidratou seus planos. O foco dos embarques passou a ser, então, o mercado brasileiro.
No ano passado, o Brasil importou 1,1 bilhão de litros de etanol dos Estados Unidos. Curiosamente, exportou ao país 1,8 bilhão de litros.
Segundo Plinio Nastari, presidente e CEO da Datagro Consultoria, o Brasil não exporta mais etanol aos americanos porque os Estados Unidos são os maiores consumidores de gasolina do mundo. “Apenas 10% do mercado automotivo americano consome etanol, enquanto nossa proporção é de 46%”, diz à BBC News Brasil.
Para Marcos Jank, professor sênior de agronegócio global do Insper e ex-presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), é preciso reduzir o protecionismo. “Não faz sentido propor biocombustíveis como alternativa ao petróleo se as tarifas praticadas continuarem altas. Por isso, vejo com bons olhos a redução do protecionismo ao etanol.”
Mas Jank faz ressalvas às negociações que envolvem uma maior abertura do mercado americano ao açúcar brasileiro, que poderia afetar a lucratividade dos produtores nacionais.
“No curto prazo, pelo fato de que o etanol americano é mais barato do que o etanol brasileiro, uma abertura completa do mercado causaria prejuízos. Por isso, existe uma pressão de parte considerável da indústria contra a abertura imediata. Essa é a razão pela qual são necessárias compensações, dentro das negociações.”
Novos mercados para etanol
O etanol de milho e o da cana de açúcar têm o mesmo potencial energético, mas diferem na intensidade de carbono – a produção do etanol a partir do milho é mais “suja”.
“Basicamente, a cana tem o bagaço. Ou seja, quando se fabrica o etanol, se usa a própria energia dessa matéria-prima. Já o milho requer uma fonte energética adicional. Sendo assim, o etanol da cana gera uma economia maior de gases de efeito estufa, causadores do aquecimento global. É mais limpo”, diz Nastari, da Datagro Consultoria.
Além disso, a produtividade do etanol de cana de açúcar é maior do que o milho. “A cada hectare plantado, geramos 4 mil litros de etanol a partir do milho e de 6 mil a 7 mil a partir da cana.”
Além de cobrar maior reciprocidade dos Estados Unidos, produtores estão de olho em novos mercados.
A indústria nacional vem se empolgando com a possibilidade de que China, Índia e Filipinas passem a adotar o chamado E10, a gasolina com 10% de álcool. Já a Tailândia, outro consumidor em potencial, poderia acrescentar uma fatia 20% de álcool à gasolina.
Caso esses quatro países realmente adotem o E10 e o E20, haveria uma demanda adicional de 19,4 bilhões de litros de etanol por ano, o equivalente a mais da metade da produção brasileira.
Os produtores brasileiros também estão esperançosos com o RenovaBio, como é chamada a Política Nacional de Biocombustíveis, que passará a vigorar a partir de janeiro de 2020. O objetivo é reduzir as emissões de gás carbônico em 11% até 2029 em comparação com 2018. Para isso, será preciso estimular aumento da produção e do consumo de combustíveis renováveis.
Na prática, a produção nacional deve crescer para 48 bilhões de litros (contra os atuais 33 bilhões), exigindo um investimento de R$ 60 bilhões a R$ 70 bilhões na próxima década.
Fonte: BBC