Na praia de Mambucaba, no município carioca de Angra dos Reis, um punhado de turistas aproveita o sol quente do inverno brasileiro. “A gente teria muito mais turistas se transformasse isso aqui num polo turístico”, diz o dono de restaurante Doriel, comentando as intenções manifestadas pelo presidente Jair Bolsonaro de transformar a região numa “Cancún brasileira”, com resorts e cassinos.
“Se ele trouxer [resorts e cassinos], vai empregar muita gente”, afirma Ronardi, vendedor de sorvetes. Ele conhece bem o presidente, ajudou na construção da casa dele, na outra ponta da praia. Os dois também costumavam pescar juntos. “O hobby dele era mergulho, e era bom mesmo no arpão, matava muito robalo.”
Na praia de Mambucaba começa a Estação Ecológica de Tamoios, área federal de proteção ambiental que abrange 29 ilhas da Baía de Ilha Grande e que Bolsonaro gostaria de transformar numa meca turística nos moldes da mexicana Cancún. O empreendimento traria milhares de empregos e bilhões de reais em rendimentos, segundo o presidente, que olha do jardim de sua casa direto para a reserva ecológica.
A Estação Ecológica de Tamoios está localizada na Baía de Ilha Grande. O cenário é mais do que convidativo: mar azul-turquesa, ilhas no horizonte e floresta verdejante ao redor das praias.
Um paraíso, segundo a bióloga Suzana Raminelli, especialista em cavalos-marinhos e moradora de Mambucaba. Mas é um paraíso ameaçado, sobretudo pelas usinas nucleares Angra 1 e Angra 2.
A reserva de Tamoios foi criada em 1990, atendendo a um dispositivo legal que determina que todas as usinas nucleares deverão ser localizadas em áreas delimitadas como estações ecológicas. Um decreto presidencial não bastaria para suspender a condição de reserva natural da área – primeiramente, o Congresso teria que alterar a legislação.
Segundo Raminelli, o atual turismo barato já é um problema para Mambucaba e a reserva. “O turista que vem para cá não tem um espírito de ecoturista. Ele vem, deixa lixo, não cuida da praia”, afirma a bióloga.
Em vez do turismo em massa, como vislumbra Bolsonaro, ela defende o turismo sustentável. “Se fosse para ter um programa de visitação turística de qualidade aqui, a primeira pauta do programa seria investir na parte ambiental, para trazer um turismo de qualidade”, diz Raminelli.
O lojista Luiz Alberto também quer mudanças, porque “quem tem mais dinheiro, vai para um lugar melhor”. Mas ele também não quer cassinos e hotéis enormes por ali. “Muita construção também não quero. Tem que ser algo que respeite a natureza”, diz.
A Baía da Ilha Grande não pode ser comparada com Cancún, afirma o ativista ambiental Ivan Marcelo Neves, recomendando que Bolsonaro desista de seus planos. “A caneta [presidencial] aceita quase tudo. Agora, do ponto de vista de viabilidade do aspecto ambiental, econômico, cultural e histórico, é um erro sem precedentes”, afirma Neves.
Segundo o ativista, desde a década de 1960 há tentativas de desenvolver a indústria e o turismo em paralelo. As plataformas de petróleo da Petrobras e os estaleiros convivem com grandes redes hoteleiras e seus “caixotes de concreto”, diz.
“Hoje, todos eles estão fadados ao insucesso. Pois não é compatível com a renda do povo brasileiro. É um desperdício, não condiz com a realidade do local”, considera Neves.
Ao mesmo tempo, afirma o ambientalista, os ricos de Rio de Janeiro e São Paulo preferem montar seu próprio refúgio em locais remotos da região, onde buscam sossego. “Esse setor não vê com bons olhos essa proposta [de uma “Cancún brasileira”]”, diz.
Patrimônio Mundial ameaçado?
Também o município histórico de Paraty, localizado uma hora de carro ao sul de Mambucaba, recebe convidados abastados. O destaque da cidade é a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), realizada anualmente desde 2003.
Em julho deste ano, Paraty foi reconhecida como Patrimônio Mundial da Unesco, algo que trouxe esperanças à secretária de Cultura da cidade, Cristina Maseda. “O aumento do fluxo de turismo nos interessa, por um lado. Mas estamos pensando num turismo sustentável.”
Isso porque o título da Unesco foi concedido pela rara combinação de cultura, natureza e história. Com sua arquitetura e cultura, Paraty faz parte desse chamado sítio misto (natural e cultural), que inclui ainda o Parque Estadual de Ilha Grande e o Parque Nacional da Serra da Bocaina, com suas montanhas costeiras e comunidades indígenas e quilombolas.
A Baía de Ilha Grande é um anfiteatro onde homem e natureza se reúnem, classifica Maseda. A reserva de Tamoios está localizada exatamente entre os locais protegidos pela Unesco, na chamada zona-tampão. Um ponto turístico provavelmente significaria a perda do recém-conquistado título.
“Se o presidente do país diz que quer fazer uma Cancún, é porque o negócio vai vir pesado. E já está vindo”, diz Edmundo Gallo, da ONG socioecológica Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis do Mosaico da Bocaina.
Para Gallo, o título da Unesco não alivia a pressão sobre o território. “Já temos uma pressão imobiliária muito grande sobre os territórios caiçaras, e estamos com o projeto do pré-sal, o programa nuclear, temos os estaleiros e vários projetos de resorts. Isso não vai parar, assim como não vai parar a pressão sobre Tamoios e todas as unidades de conservação”, afirma.
“Cruzada de vingança de Bolsonaro”
Vaguinho do Campinho, integrante do Quilombo do Campinho, representante dos povos indígenas e quilombolas da região de Paraty, também prefere mais sustentabilidade em vez de turismo de massa, pois este significaria o fim de manguezais, praias privadas e ameaça à natureza e à biodiversidade.
Soma-se a isso o aumento da produção de lixo, da prostituição e do tráfico de drogas de gangues que já controlam vastas áreas da região. “Esse modelo de desenvolvimento não nos interessa”, diz Vaguinho.
Na Flip deste ano, houve protestos contra o desenvolvimento da chamada “Cancún brasileira”. No final das contas, a ideia do empreendimento nada mais é do que uma “cruzada de vingança” de Bolsonaro, afirma o ativista Neves.
Em 2012, o Ibama flagrou Bolsonaro pescando na praia de Mambucaba. Embora fotos mostrem o então deputado e atual presidente com uma vara de pescar, ele negou tudo e nunca pagou a multa de 10 mil reais.
O episódio o fez perder o prazer em pescar, disse Bolsonaro certa vez numa entrevista na TV. E provavelmente estimulou sua aversão às autoridades ambientais e ao que chama de indústria da multa, contra a qual vem se manifestando há anos.
O funcionário do Ibama responsável pela ação de fiscalização que autuou e multou Bolsonaro foi exonerado em março deste ano. Em julho, o Ibama decidiu que prescreveu a infração ambiental cometida pelo presidente.
No governo Bolsonaro, o orçamento do Ibama foi cortado, assim como o do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (IMCBio), responsável pela administração da Estação Ecológica de Tamoios. Há relatos de que as autoridades precisam agora pegar emprestados barcos da Eletronuclear, a operadora de Angra 1 e 2, para monitorar as ilhas.
“É uma questão pessoal que mancha o país, a região, e, se se viabilizar, pode manchar muito mais a nossa baía, que ainda apresenta um grau significativo de preservação”, resume Neves.
Fonte: Deutsche Welle