Entre 30 de janeiro e 4 de fevereiro, o cenário era desolador entre as cidades de Cláudia e Sinop, a 500 km de Cuiabá, ao norte em Mato Grosso. 13 toneladas de peixes de todos os portes boiavam mortos às margens do rio Teles Pires, na área do reservatório da usina hidrelétrica Sinop.
Em questão de dias, um odor fétido se espalhou-se por 25 km ao longo do curso do rio. Cacharas, capararis, corimbatás e dezenas de outras espécies típicas da Amazônia morreram em massa enquanto o rio era tomado por espumas não naturais e restos de vegetação em decomposição avançada.
O Teles Pires, também conhecido como rio São Manuel, fica bem na divisa com o Pará e é um dos formadores do rio Tapajós, essencial à bacia hidrográfica da maior floresta tropical do planeta.
A matança de peixes neste ponto da Amazônia, segundo o Ministério Público, pode ter as digitais dos governos brasileiro e francês. Curiosamente, o desastre aconteceu meses antes das rusgas entre os presidentes Emmanuel Macron e Jair Bolsonaro, motivadas pela questão da preservação da floresta.
A Sinop Energia, responsável pela hidrelétrica, é formada por estatais do setor energético dos dois países. Tanto para o Ministério Público Estadual quanto para o Federal, o crime ambiental no Teles Pires foi causado pela usina durante o enchimento de seu reservatório.
A concessionária responsável pela hidrelétrica une as estatais Electricité de France (EDF) e Eletrobras, e detém os direitos de exploração da usina até o ano de 2043. Líder mundial no setor, a EDF é sócia majoritária no consórcio, com 51% das ações sob seu comando. Os 49% restantes estão divididos entre duas empresas controladas pela Eletrobras.
Menos de seis meses após a tragédia, a Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso autorizou o funcionamento da usina, no dia 20 de agosto. A decisão fomentou críticas, pois pesquisadores defendem que o governo do Estado tem sido conivente com a concessionária, independentemente das críticas socioambientais à iniciativa.
A Secretaria rebate dizendo que todas suas decisões sobre a hidrelétrica foram baseadas em critérios técnicos.
“Existe um discurso que as usinas trarão desenvolvimento, vão movimentar a economia local e que serão benéficas. Isso influencia a postura do governo, muitas vezes conivente [com os projetos], mesmo quando há críticas ou estudos que sugiram eventuais problemas”, diz João Andrade, coordenador de Direito Socioambiental no Instituto Centro de Vida (ICV).
A organização não governamental é uma das que monitoram a expansão de hidrelétricas e outros projetos de infraestrutura em Mato Grosso.
‘Não existem danos ambientais’, diz consórcio
O crime ambiental no Teles Pires foi o episódio mais grave de um longo imbróglio entre o Ministério Público, a Sinop Energia e o governo de Mato Grosso.
A iniciativa franco-brasileira é contestada por órgãos de controle estaduais e federais há pelo menos sete anos; neste mês, o caso teve novos capítulos.
No dia 20 de setembro, a Justiça Federal acatou um pedido feito pelo Ministério Público Federal em Mato Grosso e suspendeu a licença de operação concedida pelo governo estadual em agosto.
Porém, no dia 24, menos de uma semana após a decisão, a mesma Justiça Federal voltou atrás. O juiz Murilo Mendes autorizou a retomada das atividades na hidrelétrica até esta terça-feira, 1º de outubro, quando será julgada uma ação civil pública sobre a matança de mais de 81 mil peixes no Teles Pires.
O MP do Estado acusa a Sinop Energia e o governo de Mato Grosso de serem responsáveis por um crime ambiental no rio. Ainda em fevereiro, o Ministério Público pediu o bloqueio de R$ 20 milhões da concessionária franco-brasileira para “garantir a efetividade da eventual condenação para fins de reparação dos danos”.
No mesmo mês, a secretaria de Meio Ambiente multou a Sinop Energia em R$ 50 milhões por conta do episódio.
Pesquisadores como Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, têm criticado o projeto desde sua concepção. Integrante da equipe que recebeu o Nobel da Paz em 2007 por pesquisas sobre mudanças climáticas, o perito defende punições ao consórcio franco-brasileiro.
“A empresa tem que se responsabilizar pelos impactos, e as empresas responsáveis pelas outras barragens devem também ser responsabilizadas pelos impactos das suas obras”, diz Fearnside.
O rio Teles Pires tem outras três hidrelétricas de grande porte em seu curso, todas também alvos de críticas por conta de impactos sobre meio ambiente, povos indígenas e ribeirinhos.
À BBC News Brasil, o consórcio formado pela EDF e pela Eletrobras nega culpa no caso. A empresa afirma que “não existem danos ambientais decorrentes da implantação da usina hidrelétrica Sinop, mas alguns impactos ambientais negativos inerentes à implantação de empreendimento dessa magnitude”.
Um desastre evitável?
O possível crime ambiental em torno da hidrelétrica Sinop não veio sem avisos. Nos últimos anos, peritos e especialistas alertaram que o enchimento do reservatório traria danos irreversíveis ao rio Teles Pires e à sua biodiversidade.
O principal problema seria a alteração nos níveis de oxigênio nas águas do rio durante esta etapa de sua instalação.
O fenômeno aconteceria como consequência do alagamento de vegetações que não foram removidas do local escolhido para o reservatório, mantendo grande quantidade de biomassa para ser decomposta. Com isso, o rio se tornaria hostil à vida de peixes e outras espécies que dele dependem.
Philip Fearnside foi um dos alertaram sobre o risco da operação. O perito diz que “apenas 30% da vegetação havia sido removida da área [quando as comportas foram abertas], ao invés dos 100% exigidos por lei — uma lei que tem sido amplamente ignorada [em Mato Grosso]”.
“Deixar árvores em um reservatório como o da hidrelétrica Sinop contribui para diversos impactos ambientais, como a emissão de gases de efeito estufa — especialmente metano — e a transformação de mercúrio na sua forma venenosa, metil-mercúrio”, afirma Fearnside em seu relatório sobre o caso.
Logo após a matança dos peixes, uma equipe do Centro de Apoio às Promotorias de Justiça de Mato Grosso visitou a área para medir os danos. Baseado no relatório sobre o caso, o MP de Mato Grosso diz que a Sinop Energia removeu apenas 86 km² da vegetação na área inundada — o reservatório alagou 300 km², o equivalente a três vezes a área da capital do Espírito Santo, Vitória.
“Se as medidas de teor de oxigênio feitas pela Politec (Perícia Oficial e Identificação Técnica) estão certas, não há dúvida de que a falta de oxigênio na água era suficiente para matar os peixes, e a turbidez [das águas do rio] seria só uma agravante”, diz Philip Fearnside.
Tanto a concessionária franco-brasileira quanto o governo de Mato Grosso negam a hipótese. A Sinop Energia diz que “atende plenamente às exigências do licenciamento ambiental”, enquanto a Secretaria de Meio Ambiente alega que “a manutenção de parte da vegetação se deu dentro dos padrões da norma vigente, com apoio em dados técnicos”.
Economia de gastos, críticas e pesquisas ignoradas
Menos de duas semanas após as mortes de peixes no Teles Pires, o MP de Mato Grosso tentou punir os executivos responsáveis pela Sinop Energia. Em 13 de fevereiro, os promotores Marcelo Caetano Vacchiano e Joelson de Campos Maciel pediram o monitoramento, pela Justiça, de parte do conselho administrativo da empresa.
Como a Sinop Energia é um consórcio franco-brasileiro, havia a possibilidade de diretores fugirem do país. Os promotores pediram que o então presidente da usina, o engenheiro francês Jean Christophe Marcel Jos Delvallet, e outros três membros do conselho fossem obrigados a usar tornozeleiras eletrônicas, além de serem proibidos de entrar na área da hidrelétrica e em órgãos ambientais do Estado.
Procurada, a Sinop Energia diz que “o sr. Jean Christophe não é mais o Diretor-Presidente da companhia e nunca lhe foi imputado o uso de tornozeleira eletrônica ou qualquer outra medida que limitasse, ainda que parcialmente, seus direitos civis”.
Segundo o MP estadual, o grupo responsável pela usina teria cometido os crimes de associação criminosa e uma série de irregularidades ambientais: descumprimento de obrigação de relevante interesse, fraude em procedimento administrativo, omissão ou fraude em licenciamento e poluição.
O MP de Mato Grosso também diz que os responsáveis pela Sinop Energia escolheram métodos mais baratos para instalar a usina, que não garantiam a proteção ambiental do rio e de sua biodiversidade.
Em inquérito policial sobre o caso, os promotores dizem que o método escolhido “teve caráter estritamente econômico-financeiro”, pois assim haveria “economia de gastos com supressão vegetal, destinação de produtos florestais” e o consórcio poderia até ser “dispensado de pagamento de reposição florestal em virtude de não ter realizado a remoção”.
A Secretaria Estadual de Meio Ambiente nega qualquer responsabilidade. Já a empresa franco-brasileira afirma que “a supressão da vegetação, além das demais ações preparatórias ao enchimento do lago, foi corretamente planejada e executada”.
Problemas há mais de sete anos
Desde 2012, tanto o Ministério Público Estadual quanto o Federal questionam a viabilidade ambiental da hidrelétrica. Mas os problemas ligados à usina vão além: à época de concessão de licenças para instalação, por exemplo, a Procuradoria da República em Sinop identificou irregularidades em outras etapas do projeto.
Em uma ação civil pública, protocolada em junho de 2018 pelo procurador Felipe Giardini, o MPF em Mato Grosso viu problemas na aquisição de terras pela Sinop Energia. O MP federal acusava o consórcio franco-brasileiro de ter comprado imóveis na área onde a usina seria construída por um valor muito abaixo do preço de mercado.
A diferença entre os valores orçados pela empresa e os avaliados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é significativa. Segundo o MPF, o preço estipulado pelo Incra era de aproximadamente R$ 12 mil, enquanto o consórcio franco-brasileiro pagou R$ 3 mil por hectare. Mais de 200 famílias viviam nas redondezas, ocupando a chamada Gleba Mercedes, um assentamento da reforma agrária.
A empresa nega as acusações. A Sinop Energia diz que conseguiu fazer acordos com 90% dos proprietários na região atingida pela usina, alegando que isso “mostra de forma incontestável que a metodologia de avaliação e o preço pago pelos imóveis foi correta”. Mas a disputa em torno da área ainda parece longe do fim.
Em pesquisa no sistema eletrônico da Justiça Federal da 1ª Região, responsável por analisar o caso, a BBC News Brasil constatou que ainda existem processos em andamento. As ações pedem indenização por danos morais causados pela Sinop Energia.
Fonte: BBC