Nas paredes ásperas de uma caverna no sudoeste da França, há magníficas pinturas de animais, deixadas ali por um artista pré-histórico há cerca de 40 mil anos. Acima de um touro, há sete pontos que sugerem que essas primeiras obras de arte guardam um segredo estrelado.
Cientistas acreditam que os pontos representam um conjunto de estrelas que faz parte da constelação de Touro, que paira acima da Europa durante o inverno. Se a teoria estiver correta, aponta que os primeiros habitantes da Europa entendiam mais sobre estrelas do que poderíamos suspeitar.
Milhares de anos depois, os romanos antigos traçaram formas semelhantes a partir dos pontos de luz produzidos no céu por bolas de fogo distantes e reflexões. Mais tarde, vikings e exploradores europeus usaram estrelas para navegar para novas terras.
Entre as 6 mil estrelas potencialmente visíveis a olho nu, existem algumas que têm um significado particular, como Polaris, ou Estrela do Norte, usada por marinheiros há milhares de anos para ajudá-los a cruzar os oceanos, porque parece ficar parada para quem a observa no hemisfério norte.
Mais recentemente, telescópios nos deram a oportunidade de vislumbrar o universo turbulento além de nosso sistema solar, onde há supernovas e buracos negros supermassivos capazes de engolir galáxias inteiras.
A chegada da era espacial também significou que nossa visão do céu pode ser artificialmente alterada. Milhares de satélites e a estação espacial podem ser vistas se a luz do Sol refletir corretamente em suas superfícies à medida que orbitam a Terra, fazendo com que se pareçam com estrelas se movendo no céu.
A Estação Espacial Internacional (ISS), que, a cada 92 minutos, dá uma volta ao redor da Terra a 400 km acima de nós, é o terceiro objeto mais brilhante do céu.
Mas, pela primeira vez na história, o céu está prestes a ser deliberadamente alterado de maneiras que transformarão completamente nossa visão da paisagem estelar.
Grandes conjuntos de satélites e obras de arte orbitais podem criar novas “estrelas” artificiais que se tornarão atrações noturnas para as gerações futuras.
Novas ‘estrelas’
Nossa crescente dependência da tecnologia espacial já está fazendo com que o céu fique cada vez mais cheio de pontos brilhantes à medida que centenas de novos satélites são lançados a cada ano.
Enquanto a maioria de nós pode apenas vislumbrar um brilho fugaz quando um deles passa por cima, eles já estão criando problemas para os astrônomos ao observar o Universo.
“Assim como temos a poluição de luz nas cidades, que nos impede de ver estrelas mais fracas, eles [satélites] têm um efeito semelhante e, mesmo com telescópios maiores, ainda é algo difícil de contornar”, diz Hannah Baynard, astrônoma do Observatório Real Greenwich, na Inglaterra.
Embora alguns possam argumentar que os serviços prestados por esses satélites justificam essa alteração do céu, há planos de colocar em órbita novos tipos de espaçonaves que terão propósitos puramente estéticos.
A empresa russa StartRocket revelou que deseja lançar até 300 pequenos satélites com velas reflexivas retráteis em órbita terrestre baixa. Uma vez no espaço, eles podem ser organizados como pixels em uma tela para representar logotipos de empresas, à medida que são iluminados pelo Sol.
Isso significaria que, por aproximadamente seis minutos por noite, poderíamos contemplar as primeiras constelações de marcas comerciais.
Até agora, a empresa lançou com sucesso uma sonda de “pixel de luz” na estratosfera, dotada de uma camada reflexiva que funciona como um espelho, que a StartRocket diz poder ser vista da Terra.
Mas colocar uma frota de satélites em órbita para flutuar no espaço em formação será muito mais desafiador. E arrecadar o dinheiro para isso também pode ser um obstáculo.
A StartRocket espera lançar seu novo serviço em 2021, ao exibir o símbolo da paz no céu. A empresa insiste que seus satélites não sobrevoarão reservas naturais ou serão visíveis fora das grandes cidades, mas o plano enfrenta forte oposição daqueles que olham para o céu, tanto profissionalmente quanto por hobby.
“O capitalismo atingiu níveis estratosféricos”, diz Ghina Halabi, astrofísica da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. “Sou 100% contra essa poluição espacial e mercantilização do céu.”
Mas a StartRocket não está sozinha. Uma empresa chinesa anunciou no ano passado ambiciosos planos de criar uma “Lua falsa”, que, segundo relatos, poderia ser lançada em 2020.
Não há detalhes sobre como ela seria ou funcionaria, mas, segundo o presidente do Instituto de Pesquisa em Ciência Aeroespacial e Sistemas de Microeletrônica de Chengdu, ela refletiria a luz do Sol com uma intensidade “oito vezes” maior do que a da Lua real. Mas, desde o anúncio inicial, não foram divulgadas novas informações sobre o projeto.
Obras de arte em órbita
Estes não são os primeiros projetos a tentar instalar obras de arte no céu. Uma tentativa de colocar uma escultura reflexiva em forma de diamante em órbita falhou em 2018.
O Museu de Arte de Nevada, nos Estados Unidos, fez uma parceria com o artista Trevor Paglan para lançar o Orbital Reflector. Se tivesse sucesso, ele se pareceria com uma estrela visto da Terra e seria a primeira obra de arte a pairar no espaço. O objetivo era debater a política espacial e questionar quem tem o direito de usar, comercializar e colocar armas no espaço.
Mas, após o lançamento do foguete que transportava o objeto, o projeto foi atingido por uma paralisação de atividades do governo dos Estados Unidos, impedindo que a equipe obtivesse permissão para inflar o balão que ativaria o refletor.
A equipe acabou perdendo contato com a obra de arte 35 dias depois que assim virou mais um lixo espacial que um dia retornará puxado pela gravidade e muito provavelmente será incendiado ao penetrar na atmosfera terrestre.
Paglan espera que a escultura ainda possa entrar em atividade se houver um curto-circuito à medida que seus componentes eletrônicos se degradem e desencadeiem acidentalmente sua sequência para inflar o balão.
“Penso no Refletor Orbital em seu estado atual como um presente não aberto, circulando no céu. Ficarei de olho no firmamento, porque, a qualquer momento, uma nova estrela poderá surgir”, diz Paglan.
Por enquanto, o Refletor Orbital apenas aumentou a massa crescente de lixo espacial, composta por naves espaciais antigas, satélites desativados e até lixo congelado, que orbita nosso planeta.
“Acho arrogante pensar que um humano pode criar instalações artísticas para ‘embelezar’ algo tão sublime quanto o céu”, diz Halabi.
Pinturas rupestres pré-históricas sugerem que é parte de nossa natureza tentar entender o mundo que nos cerca por meio de obras de arte. No entanto, há uma grande preocupação com os riscos que estes projetos podem representar para naves espaciais em um espaço cada vez mais lotado.
A China planeja construir sua própria estação espacial, que também seria ocasionalmente visível a olho nu.
A empresa SpaceX recebeu permissão para lançar quase 12 mil satélites Starlink para fornecer acesso à internet banda larga em locais remotos. Os primeiros 60 foram lançados em maio, a uma altitude de 440 km, algo que foi imediatamente notado pelos observadores de estrelas.
“Quando os Starlinks da SpaceX foram lançados, formando uma grande linha, pareciam muito brilhantes, porque estavam em uma órbita muito baixa”, diz Baynard.
No entanto, a SpaceX diz que os satélites se tornarão menos visíveis à medida que se movam para órbitas mais elevadas.
Outras oito empresas também planejam criar serviços de internet via satélite, incluindo a Kuiper Systems, subsidiária da Amazon, e recentemente pediram permissão para lançar 3.236 satélites. Tanto a SpaceX quanto a Amazon insistem que estão atentas às preocupações sobre a potencial poluição de luz que podem causar.
O que fazer com o lixo espacial?
Mas com todos esses objetos no céu, há um risco crescente de acidentes também. Já existem cerca de 8,4 mil toneladas de detritos e lixo atualmente em torno da Terra, viajando a velocidades de 28,8 mil km/h.
Isso pode danificar e até destruir satélites em caso de colisões. Em 2009, um satélite russo desativado se chocou contra um satélite comercial americano em funcionamento. Os dois equipamentos se partiram em menos 2 mil pedaços, aumentando a quantidade de detritos em órbita como resultado do incidente.
Atualmente, a Nasa rastreia milhares de pequenos detritos com tamanho que chega a ser equivalente ao de uma bola de gude. A agência americana realiza manobras de evasão regularmente para manter seus satélites seguros. A Estação Espacial Internacional também teve que fazer várias manobras para evitar detritos ao longo de seus 20 anos em órbita.
“Esses incidentes serão mais comuns à medida que os céus se tornem um campo de detritos de antigos dispositivos de vigilância, comunicação e espionagem”, alerta Halabi.
Embora existam regulamentos internacionais em vigor para limitar o aumento do lixo espacial e alguns tenham proposto uma faxina, há quem defenda uma solução que poderia transformar esse lixo em arte.
O artista holandês Daan Roosegaarde está trabalhando com a Agência Espacial Europeia (ESA) para encontrar maneiras inovadoras de enfrentar o crescente problema de lixo espacial, incluindo transformá-lo em estrelas cadentes artificiais que poderiam iluminar o céu como fogos de artifício.
O plano envolve guiar fragmentos de detritos para a atmosfera da Terra, onde queimarão no horário escolhido. “Se o lixo espacial não for considerado inútil, isso altera o debate sobre o assunto”, diz Roosegaarde.
Ele afirma que o projeto pode ser realizado dentro de três anos. Se for bem-sucedido, levantará questões com as quais a humanidade se depara desde que nossos ancestrais deixaram marcas nas cavernas da França.
As pinturas de animais e estrelas artificiais são apenas adornos estéticos ou um sinal de algo mais profundo? São uma marca de nossa própria engenhosidade? Ou são simplesmente profanam o mundo inspirador em que nos encontramos?
Como sempre, a beleza estará nos olhos de quem vê.
Fonte: BBC