Enquanto o Brasil discute uma forma de, finalmente, conseguir prover saneamento básico para toda a população, ressurge a memória de um capítulo não tão conhecido desse aspecto do país.
Durante o Brasil Império, o país era o maior território escravagista do Ocidente, com quase 5 milhões de africanos escravizados. Tal número representa cerca de 40% do total embarcado para as Américas.
Com a mão de obra escrava sendo utilizada em larga escala, foram os cativos apelidados de “tigres” os responsáveis pelo recolhimento e despejo da urina e fezes de muitos moradores das cidades durante cerca de 300 anos.
Nessa época, a maior parte das casas não contava com banheiros, água corrente ou algum outro tipo de instalação sanitária. Por isso, os moradores das antigas cidades faziam as necessidades em penicos e outros recipientes de metal ou porcelana.
Esses objetos ficavam sob as camas ou em armários até a manhã seguinte, quando eram esvaziados em grandes tonéis que comportavam todos os dejetos dos moradores da casa.
Os grandes tonéis, por sua vez, eram carregados nas costas por escravos, que os levavam até o mar ou a algum rio e por lá os despejavam.
Os ‘tigres’
Parte do conteúdo, que continha ureia e amônia, vazava dos tonéis e deixava marcas brancas sobre a pele negra, parecidas com listras. Por essa reação química, as marcas se pareciam com as do animal — daí o apelido em tom pejorativo dos “tigres” ou “tigrados”.
O cheiro dos tonéis, obviamente, não era agradável e fazia com que as pessoas não se aproximassem dos “tigres” enquanto os carregavam.
“A pele ficava listrada, com alternância de faixas pretas e outras descoloridas pela ação química dos dejetos. Por isso, esses escravos eram conhecidos como tigres”, afirma o jornalista Laurentino Gomes, autor do livro Escravidão, sobre o tema.
“Eram escravos ou escravos de aluguel que, geralmente, eram destacados para esse tipo de trabalho”, afirma o historiador Luiz Felipe de Alencastro.
Esses negros podiam ser escravos comprados por seus donos ou aqueles que prestavam serviços a diversas famílias como forma de obter um rendimento extra para o dono ou para si mesmos.
A prática, muito comum na capital da época, Rio de Janeiro, também era usual em diversas cidades do país. No Rio de Janeiro, fossas eram proibidas na cidade antiga dada a proximidade do lençol freático.
Há registros da utilização dessa mão de obra no Rio até a década de 1860. Já no Recife, por exemplo, durou até 1882.
“Tempos atrás, fui visitar uma cidade paranaense chamada Guarapuava, a centenas de quilômetros do oceano. E lá também, segundo me disse um historiador, havia escravos ‘tigres’ até o final do século 19”, disse Laurentino Gomes.
Marcas coloniais duram até hoje
Fazendo uma avaliação histórica, houve quem associasse a exploração desses escravos “tigres” a um atraso no interesse do poder público na implementação de sistemas de saneamento básico no país.
“O sociólogo Gilberto Freyre diz que a facilidade de dispor de tigres e seu baixo custo retardaram a criação das redes de saneamento nas cidades litorâneas brasileiras”, afirma Gomes.
Para Luiz Felipe de Alencastro, contudo, a mão de obra escrava não era tão barata ao ponto de se popularizar tanto no Brasil da época. “Os ‘tigres’ eram gente pobre, vulnerável ou escrava, mas não era uma mão de obra barata”, diz o historiador.
Para além da desumanização desses escravos, essa forma de descarte já mostrava um descaso grande com a questão do escoamento dos dejetos.
“No Rio de Janeiro, até hoje, a baía está totalmente poluída. O desprezo pela natureza vem desde esses tempos”, conclui Alencastro.
À época, a consciência ambiental não era algo recorrente como hoje. No Brasil, isso se agravava por conta de uma bagagem da colonização de exploração durante mais de três séculos.
“A destruição do meio ambiente é quase tão antiga quanto a história do Brasil. O primeiro registro oficial de tráfico de plantas, animais silvestres e indígenas escravizados é de 1511, apenas uma década após a chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral”, afirma Laurentino Gomes.
No entanto, Leo Heller, relator especial da ONU para os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, nota que é difícil fazer uma relação entre a utilização dos tigres e o descaso em relação ao saneamento básico.
“A preocupação com saneamento sempre houve, mas nunca foi prioritária. O que ainda existe são locais sem nenhum tipo de esgoto (…) e a figura de quem remove o esgoto”, diz o especialista.
Os vestígios do período colonial e imperial, contudo, continuam vivos até hoje no país. Segundo Heller, o fim da escravidão, e com ela o desaparecimento dos chamados “tigres”, não acabou com os problemas dos mais pobres e refletem a construção da sociedade atual em relação ao tema.
“Os escravos se transformaram em negros pobres, de periferia, que também não têm acesso a saneamento”, diz.
No caso dos tigres, a iniciativa de Dom Pedro 2º em modernizar a então capital Rio de Janeiro ao final do período imperial, na década de 1860, dá início ao saneamento básico no Brasil — o que começa a diminuir a utilização dessa mão de obra de maneira gradual nas cidades.
Logo, com a abolição, assim como no Rio de Janeiro, esses escravos são substituídos graças à chegada do saneamento básico e maneiras mais modernas de descarte dos dejetos. Mas, assim como os demais, eles permaneceram executando serviços de pouca qualificação.
“Apenas a liberdade não representa uma mudança completa na vida desses ex-escravos”, diz o historiador Alain El Youssef, doutor pela USP.
“[Após a abolição] o Estado brasileiro não se preocupa em ofertar condições mínimas à sobrevivência, nem em inseri-los de uma maneira respeitosa na sociedade. Isso traz reflexos até hoje”, afirma o historiador.
Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério do Desenvolvimento Regional, mostram que apenas 52% da população brasileira conta, atualmente, com acesso à coleta de esgoto. A falta de acesso ocorre principalmente em regiões mais pobres do país.
Fonte: BBC