Com o carro em movimento, sem tirar os olhos do mapa na tela do celular, Sérgio Nogueira, pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFG) indica o ponto exato da parada. No local, zona rural de Pium, oeste de Tocantins, uma estrutura grande de metal está construída sobre o solo vermelho, agora exposto.
Foi dali que partiu, em maio último, um alerta de desmatamento captado pelos satélites do Deter, Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Seis meses depois do alerta emitido, não há resquício do cerrado. A mata nativa foi substituída por um armazém de grãos.
A área entrou na conta do desmatamento do cerrado em 2019. O levantamento divulgado nesta segunda-feira (16/12) pelo Inpe estima que 6.484 quilômetros quadrados foram devastados de agosto de 2018 a julho de 2019. O número é 2,26% menor que o desmatamento verificado no período anterior, porém ainda alto e muito próximo ao valor absoluto medido em 2018, que foi de 6.634 quilômetros quadrados.
Sérgio Nogueira não conhecia esse dado quando foi a campo no interior do Tocantins, semanas antes da divulgação. Parte do trabalho dele, na verdade, é inspecionar a qualidade do sistema de monitoramento do Inpe: ele integra o grupo independente do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig), da UFG, que visita áreas apontadas como desmatamento e também revisa os dados no laboratório.
A expedição pelo Tocantins foi a última das quatro realizadas com o objetivo de produzir uma nova avaliação sobre a qualidade dos dados do Deter e Prodes. No total, foram 367 visitas – ou inspeções – em áreas de desmatamento apontadas pelos satélites nos estados da Bahia, Maranhão, Piauí, Tocantins e Goiás.
A primeira análise produzida pela UFG, que se concentrou em dados de derrubada da mata processados de 2000 a 2017, apontou uma alta precisão. “A acurácia global do Prodes e do Deter no cerrado corresponde a 93,4% por meio da inspeção visual”, detalha Nogueira.
É comum, durante as visitas de campo, se deparar com restos de árvores derrubadas e madeira queimada no terreno. Em outros locais, onde o desmatamento apontado ocorreu há mais tempo, plantações de arroz, soja e pasto para gado são dominantes.
Tocantins lidera o ranking de alertas emitidos pelo Deter desde 2017 para o cerrado. Segundo a plataforma MapBiomas, que refina dados coletados em diversas fontes, dos 768 alertas de desmatamento identificados de janeiro a setembro deste ano no estado, 710 não tinha autorização para derrubada da mata. São mais de 92% de ilegalidade.
Desde 1970, o cerrado brasileiro já perdeu quase metade de sua área original, segundo levantamento de 2018 da ONG WWF. Estima-se que apenas 8% do cerrado estão hoje de fato protegidos do avanço do desmatamento. Há alguns anos, um estudo publicado na revista Nature pelo Instituto Internacional para a Sustentabilidade (IIS) já alertava que, se a destruição avançar nessa toada, o cerrado brasileiro pode ser testemunha da maior perda de espécies vegetais da história.
O que o satélite vê
Andrea Scheide, auditora do projeto Prodes Cerrado, integra a expedição. No Inpe, ela revisa o trabalho dos intérpretes, como são chamados os profissionais que identificam e delimitam no mapa a área desmatada vista pelo satélite. Nenhum dado é divulgado sem que os auditores internos façam essa leitura crítica.
A partir de 2018, o monitoramento da perda do cerrado passou a ser anual, seguindo os moldes do Prodes Amazônia. A dificuldade de fazer a diferenciação da imagem gravada pelo satélite, porém, é maior: no cerrado, segundo maior bioma do país, há grandes variações na vegetação, incluindo campos naturais que parecem pastos e mata um pouco mais densa.
“É importante participar dessas expedições para confirmar os desmatamentos que vemos por satélite e entender melhor como as paisagens naturais aparecem nas imagens captadas”, explica Scheide, que trabalha com sensoriamento remoto há 21 anos.
Foi a primeira vez que ela viu ao vivo os murundus, formações com árvores de baixo porte que se agrupam em círculos por planícies. “Na imagem de satélite, murundu parece uns pontinhos pintados com canetinha”, comenta Scheide.
Campos de murundu são cada vez mais raros. A substituição da vegetação por plantações de arroz foi flagrada em vários momentos da visita de campo em Tocantins.
“De maneira geral, o bioma vem sofrendo uma pressão muito grande da agropecuária e dos sistemas de plantio comerciais e extensivos. Dentro dessa proposta de monitoramento, além da preservação de áreas importantes para biodiversidade, existem questões que vão muito além”, diz Raquel Trevisan, bióloga. “É de extrema relevância conhecer o que se tem aqui”, comenta sobre o papel do cerrado.
Água e agricultura
O cerrado é considerado o berço das águas do país. É na área desse bioma que nascem rios importantes para abastecimento de vários setores, como os que integram as bacias do Tocantins-Araguaia, do São Francisco e do Prata.
“Manter a vegetação do cerrado é crucial para manter a qualidade e quantidade dessas águas que vão abastecer essas bacias”, pontua Cláudio Almeida, coordenador do sistema de monitoramento do Inpe, sobre a vigilância por satélites.
Desde que o cerrado se transformou na região mais importante do país para produção de grãos, como soja, a partir da década de 1970, metade da vegetação original desapareceu.
“É importante monitorar o cerrado também para a agricultura brasileira”, comenta Almeida. “O cerrado tem um peso fundamental para produção de divisas, de emprego, produção de riqueza, então precisamos entender muito bem para onde a agricultura está expandindo, qual impacto que isso tem até para preservar essa agricultura, preservar em termos de manter a quantidade de água para irrigação, manter calendário de chuvas na região e também garantir que essa produção respeita critérios de sustentabilidade”, ressalta.
Fonte: Deutsche Welle