Quando Walcimar Merlim foi aprovado em um concurso público para trabalhar como auxiliar operacional em uma empresa estatal, não imaginava que o trabalho seria em uma prisão.
“Quando recebi o convite, no início, fiquei temeroso”, explica Merlim. “Eu tinha uma visão como a sociedade tem. Esse ‘medo’ de lidar com pessoas que estão no sistema penitenciário.”
Há 11 anos Merlim faz parte da equipe do programa socioambiental Replantando Vida, que oferece emprego remunerado a detentos da Colônia Agrícola Marco Aurélio Vergas Tavares de Mattos, em Magé (RJ). A iniciativa faz parte de um convênio firmado entre a Fundação Santa Cabrini, responsável pela gestão da mão de obra prisional do Estado do Rio, e a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) — atualmente sob os holofotes devido a uma grave crise no fornecimento e na qualidade da água distribuída pela empresa desde o início do ano.
Merlim, hoje no cargo de agente de saneamento, treina e acompanha presos em regime semiaberto e aberto em ações de reflorestamento de matas ciliares.
“Saio de casa às 6h da manhã e retorno às 20h, então tenho mais tempo para conversar e conviver com eles do que com a minha própria família”, comenta. “Hoje tenho amigos ex-apenados que frequentam a minha casa.”
Com capacidade para 420 mil prisioneiros, as cadeias do Brasil mantêm 720 mil pessoas atrás das grades, segundo o Ministério da Justiça. Duzentos e trinta mil são presos provisórios que aguardam julgamento. O país tem a terceira maior população prisional do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa em Política Criminal da Universidade de Londres.
As imagens corriqueiras de celas superlotadas e violentas rebeliões em penitenciárias do país contrastam com a tranquilidade da colônia penal de Magé, localizada em uma área verde restaurada pelos próprios presos. Em dezembro de 2019, quando a reportagem esteve na penitenciária, 35 deles trabalhavam no viveiro mantido no local.
‘Tiro o alimento dos meus filhos daqui’
Adriano Gaudard, de 31 anos, passou a cumprir pena na colônia em 2017. Morador de Magé, ele trabalha durante o dia e volta para casa à noite, uma vez que obteve progressão para o regime aberto.
“Tenho 3 filhos. Tiro meu salário todo daqui, e o alimento deles de cada dia. E assim a gente vai seguindo a nossa vida”, diz.
Os participantes do programa recebem um salário mínimo nacional, auxílio transporte e alimentação, e têm um dia de pena reduzido para cada três de trabalho.
“O Walcimar ajuda a gente, não é só de mandar. Ele mete a mão também, faz tudo junto com a gente”, conta Gaudard. “A gente se torna amigo. A gente entra como colega e vai se conhecendo cada vez mais, e ali se forma uma amizade que a gente leva até para a rua.”
Apenas 4% dos 53 mil presos do Estado do Rio realizam trabalho remunerado, segundo a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap-RJ).
“É difícil achar que você vai ter uma oportunidade quando ganha uma pena. As coisas perdem o chão,” diz Ignacio Barbosa, de 46 anos. “Com o decorrer do tempo, você começa a focar em mudar. Tem que querer para fazer as coisas acontecerem.”
Há 10 anos preso, Barbosa estudou durante quatro anos enquanto cumpria pena no regime fechado, mas não chegou a concluir o ensino fundamental. Agora com permissão para realizar trabalhos externos durante o dia, ele atua com Merlim em ações de reflorestamento.
“A gente que trabalha na rua às vezes sai às 6h da manhã, acorda cedo e essas são as primeiras pessoas com quem a gente está lidando”, diz. “Todo mundo tem problema familiar. Então a gente acaba desabafando entre a gente mesmo, conversando, se aconselhando, porque as coisas são difíceis.”
Ainda que Merlim nunca tenha tido problemas relacionados à segurança, ele diz que a convivência com os presos nem sempre é simples.
“Quando você recebe um apenado, ele está completamente perdido. Tem apenado que chega aqui e você fala: ‘Pega uma enxada’. E ele leva uma foice. Ele não conhece as ferramentas. Ele está há tanto tempo no sistema (prisional)… E a maioria nunca trabalhou na vida”, explica. “Eu não gosto de estar perguntando muito: ‘O que você fez? O que você cometeu para estar aqui?’ Eu prefiro assim: ‘Olha só, você tem toda a oportunidade daqui pra frente para mudar’.”
‘Vai ficar para as próximas gerações’
Os presos que têm interesse em trabalhar na colônia penal precisam passar por um processo seletivo.
“Há muitos querendo entrar por essa porta, porque é um caminho de dignidade, de paz, de tranquilidade. É um aprendizado muito grande lidar com a natureza em si. A gente ensinar nossos filhos a mexer numa terra, a cuidar de uma planta, a cuidar de uma mudinha para ela crescer e amanhã se transformar em uma árvore,” diz Barbosa.
Cerca de 4 mil presidiários já passaram pelo programa Replantando Vida. Após ganharem a liberdade, quatro deles ingressaram na Cedae por meio de concurso público e cerca de 200 são trabalhadores terceirizados.
Ao longo dos anos, mais de 3 milhões de mudas produzidas pelo programa, que conta com sete viveiros, foram plantadas em áreas que totalizam 500 hectares.
“Se você plantar uma muda de qualquer jeito, ela não vai crescer. Vai crescer uma árvore torta, uma muda sem qualidade nenhuma. Então tem que se pensar nisso também. A gente conversa bastante sobre isso, para fazer um trabalho bem feito, porque vai ficar aí para outras gerações. A gente, de repente, não chega a ver uma árvore chegar ao tamanho ideal, mas e os nossos filhos, nossos netos e as gerações que vão vir? Além de ver, vão poder desfrutar delas”, comenta Barbosa.
Aos 49 anos e com formação técnica em contabilidade, Merlim agora está cursando uma faculdade de Biologia, motivado pelo trabalho que faz na colônia penal.
“Aprendi muito com eles e acho que eles aprenderam muito comigo. A gente está a cada dia aprendendo um com o outro”, diz Merlim. “Todos nós estamos propícios a erros e acertos. Às vezes a gente erra mais do que acerta. Mas, por menores ou maiores que sejam os erros, você tem que abrir essas oportunidades. Porque é nessas oportunidades que você vê a mudança nas pessoas.”
Fonte: BBC