Dióxido de carbono ainda se acumula de forma implacável na atmosfera. Especialistas demonstram que, mais do que nunca, é primordial buscar soluções.
Em maio, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera subiu para cerca de 418 partes por milhão. Foi o valor mais alto já registrado na história da humanidade e provavelmente mais alto do que em qualquer outro momento ao longo dos últimos três milhões de anos.
Esse recorde foi quebrado em meio à pandemia do novo coronavírus, embora a crise da saúde tenha causado uma das maiores e mais drásticas quedas já registradas nas emissões de CO2. Durante o pico das medidas de isolamento implementadas em todo o mundo no primeiro trimestre do ano, as emissões diárias ficaram cerca de 17% abaixo em comparação ao ano passado, de acordo com uma pesquisa publicada esta semana na revista científica Nature Climate Change.
Mas até mesmo essas significativas quedas nas emissões de dióxido de carbono terão pouco impacto na concentração geral de CO2 na atmosfera, diz Richard Betts — cientista do Met Office do Reino Unido — e é isso que mais importa para as mudanças climáticas.
A pandemia interrompeu a vida no planeta todo e as ordens de ficar em casa vêm mantendo as pessoas reclusas há meses em diversas regiões. Mas a interrupção representa apenas uma leve queda na concentração geral de CO2 na atmosfera devido ao tempo que o gás leva para se dissipar.
Mas e essa concentração recorde de 418 partes por milhão? Ela seria apenas 0,4 parte por milhão mais alta sem a queda nas emissões acarretada pelo vírus, de acordo com uma análise publicada no site de ciências e políticas climáticas CarbonBrief no início de maio.
Ainda assim, para Constantine Samaras, especialista em energia e clima, a mensagem é clara: ainda que essa pandemia devastadora exerça um impacto ínfimo nos níveis de CO2 atuais, não significa que a crise climática esteja perdida.
“Uma pandemia é a pior maneira possível de reduzir as emissões. Não há nada para comemorar”, afirma Samaras, da Universidade Carnegie Mellon. “Temos que reconhecer isso e entender que a única forma de reduzir as emissões efetivamente é por meio de mudanças tecnológicas, comportamentais e estruturais.”
O que foi possível observar com as emissões de CO2 e as concentrações?
Durante essa crise global devastadora e sem precedentes, milhões de pessoas que puderam ficar em casa fizeram exatamente isso. Os carros foram guardados nas garagens. As viagens aéreas foram quase totalmente interrompidas. As fábricas reduziram suas operações ou pararam. Edifícios públicos fecharam suas portas. Até a construção civil desacelerou. Quase todos os setores da economia que consomem energia reagiram ao choque de uma maneira ou de outra.
O resultado foi uma das maiores quedas isoladas da história moderna na quantidade de dióxido de carbono emitida pelos humanos.
Nos primeiros meses de 2020, as emissões diárias de CO2 ficaram em média 17% mais baixas do que em 2019. Durante os bloqueios mais restritivos e extensos, as emissões em alguns países ficaram quase 30% abaixo das médias do ano passado, diz Glen Peters, um dos autores da análise da Nature Climate Change e cientista climático do Center for International Climate Research da Noruega.
As emissões da China foram reduzidas em cerca de um quarto em fevereiro. Outros países presenciaram quedas de uma pequena porcentagem em março e abril, constatou uma equipe liderada por Zhu Liu, da Universidade Tsinghua, em uma análise distinta. Os efeitos, em alguns aspectos, são significativos — mas em outros, não são suficientes, explica ele.
“Somente se reduzíssemos nossas emissões ainda mais e por mais tempo, poderíamos ver um declínio nas concentrações na atmosfera”, diz ele. “Provavelmente precisaríamos de uma redução de 20% durante o ano todo — todos os meses, no mundo inteiro, assim como foi em abril. Mas o mundo não ficará em bloqueio por tanto tempo.”
A Agência Internacional de Energia estima que até o fim de 2020, as emissões globais serão reduzidas em cerca de 8% em comparação com o ano passado. Isso resultaria em cerca de 2,6 bilhões de toneladas de carbono não liberadas na atmosfera. A equipe da Nature Climate Change estima que esse número esteja entre 4 e 7%, dependendo do andamento dos bloqueios ao longo do ano. Se as pessoas forem novamente forçadas a ficar em casa devido a um aumento nas taxas de infecção por covid-19, as emissões poderão cair ainda mais.
Mas isso não significa que o problema do dióxido de carbono esteja resolvido, nem mesmo que haja muito efeito positivo em céus sobrecarregados de CO2.
“As mudança climáticas são um problema cumulativo”, diz Peters. “Não é como outro tipo de poluição, no qual se despeja algo em um rio e depois que a atividade é interrompida o problema se resolve. São todas as nossas emissões passadas que contam.”
Pense na atmosfera como uma banheira. As emissões de CO2 causadas pelos humanos são como a água que sai da torneira. O oceano e a terra, que absorvem ou consomem parte desse CO2, são o ralo — mas mesmo quando abertos, só conseguem escoar metade da água que entra.
Quando um evento importante como a atual pandemia reduz as emissões de CO2, é como se a torneira tivesse sido fechada em 17%. Mas a torneia ainda despeja mais de 80% da água na banheira, então o nível da água continua subindo. A banheira pode não encher tão rapidamente quanto antes, mas com certeza a água não está sendo drenada completamente.
Em resumo, apesar de as emissões terem caído, CO2 ainda está sendo liberado na atmosfera e ainda se acumulará, da mesma forma como vem se acumulando desde que os humanos começaram a queimar grandes quantidades de combustíveis fósseis.
“Tratamos a atmosfera como um grande depósito de lixo”, diz Ralph Keeling, cientista da Scripps Institution of Oceanography, cujo laboratório administra o projeto de monitoramento de CO2 atmosférico em longo prazo de Mauna Loa. “Mas quando você joga algo no lixo, ele vai para o aterro. Permanece lá. Não podemos simplesmente eliminá-lo.”
O que essa queda nas emissões significa para o clima?
Os cientistas têm uma boa noção de quanto CO2 ainda se acumulará na atmosfera a cada ano: cerca da metade da quantidade que liberamos (a outra metade é absorvida pelas plantas e pelos oceanos). A cada ano, a concentração média aumenta. Em 2018, por exemplo, as concentrações aumentaram 2,5 partes por milhão, para uma média de 407,4. As médias de 2019 ainda não foram divulgadas, mas é esperado um valor semelhante.
Além dessa tendência crescente — que depende principalmente da quantidade emitida pelos humanos — as concentrações de CO2 aumentam e diminuem durante as estações do ano. Elas são mais altas no fim da primavera de cada ano, pois a vegetação no Hemisfério Norte entra em atividade após o inverno e devora o carbono, e mais baixas no início do outono, à medida que as plantas desaceleram para o próximo inverno (o Hemisfério Norte tem muito mais terras e vegetação que o Sul, por isso é considerado para definir esse padrão).
Betts e seus colegas adotam um modelo que realiza essas previsões para o próximo ano. Suas previsões são geralmente muito precisas. Assim que ficou evidente que o coronavírus reduziria as emissões este ano, eles perceberam que poderiam descobrir exatamente o quanto a redução afetaria as concentrações gerais de CO2 na atmosfera.
No início da pandemia, a equipe de Betts já havia previsto o comportamento do CO2 atmosférico em 2020. A previsão mostra que em maio, no pico do ciclo sazonal anual do gás, sua concentração provavelmente oscilará em torno de 417 ppm (e, conforme previsto, no início de maio a estação detectou uma concentração de pouco mais de 418 partes por milhão). A equipe também previu que em sua baixa sazonal em setembro, pode atingir cerca de 410 partes por milhão. Portanto, a previsão final, para a média ao longo do ano é de 414 partes por milhão. O número não difere muito da previsão da equipe quando não considerava os impactos relacionados ao coronavírus.
“A mensagem de tudo isso é que há um limite do que pode ser feito em termos de ações individuais”, afirma Betts — ações como dirigir menos ou viajar menos de avião. “O que fizemos neste momento devastador foi provavelmente o máximo que cada um poderia fazer em termos de redução das próprias emissões.”
Então, ele diz, “não se trata de voltar ao modo como as coisas eram, mas a um modo melhor”.
Ainda estamos emitindo muito CO2
O que Betts mostrou foi o lado sombrio do problema das emissões. Mesmo com toda essa reviravolta econômica e o custo emocional do isolamento, nossas emissões caíram apenas 17% no curto prazo e provavelmente cairão menos de 10% no ano. Os efeitos dessas quedas no problema geral dos gases de efeito estufa são insignificantes.
Em outras palavras: ainda são liberados mais de 80% da quantidade de CO2, como anteriormente, mesmo quando a vida parece estar extremamente diferente. Agora ficou evidente que permanecer em casa está longe de ser suficiente para resolver a crise climática.
“Do ponto de vista da humanidade, a pandemia da covid-19 é o maior evento que muitos de nós já vivemos. Isso afeta literalmente todas as pessoas do planeta”, diz Anna Michalak, cientista da Carnegie Institution for Science de Stanford.
“De certa forma, é difícil se conformar com a pandemia e com o fato das emissões representarem apenas uma pequena diferença; parece até mesmo uma afronta. Mas é importante lembrar que a situação nos mostra como o uso do carbono como fonte de combustível está fortemente enraizado em todos os aspectos do funcionamento do nosso planeta, então as emissões continuam ocorrendo”, afirma ela.
O IPCC alertou que o aumento da temperatura global deve ficar limitado a 1,5 grau Celsius além dos níveis pré-industriais a fim de impedir que os piores e mais devastadores efeitos das mudanças climáticas prejudiquem os humanos. Para atingir esse objetivo, as emissões globais de gases de efeito estufa pelos humanos precisam começar a cair cerca de 7,6% ao ano a partir de agora até 2030 (e posteriormente). Em algum momento, é claro, elas precisam chegar a zero.
A queda nas emissões deste ano está em cerca de 8%. Samaras diz que de forma alguma isso representa o impacto que um esforço global conjunto teria para realmente atingir esse objetivo. Mas também não deve ser considerado como uma indicação de que os esforços seriam inúteis.
“A mensagem não deve ser: é difícil demais”, afirma ele. “A mensagem deve ser: temos que batalhar para encontrar uma maneira de fazer isso direito.”
De onde ainda vem todo o CO2?
A equipe da Nature Climate Change dividiu as fontes de CO2 em seis categorias e analisou a mudança que cada uma delas representou entre janeiro e abril, conforme os países entravam e saíam do confinamento.
A atividade com maior impacto foi a aviação, que caiu em média 75% até o início de abril. Mas os aviões representam apenas cerca de 3% do problema das emissões de CO2; portanto, até mesmo essa queda enorme provocou apenas um pequeno efeito no fluxo da “torneira” de CO2.
A outra grande mudança ocorreu no transporte de superfície, como carros e caminhões, no qual a atividade diária foi reduzida em média 50%. Essa mudança teve um grande efeito nas emissões porque dirigir compõe uma fatia maior dos resíduos de CO2 emitidos em tempos normais. Nos quatro meses em que as pessoas dirigiram menos, cerca de seis megatons de CO2 deixaram de entrar na atmosfera todos os dias, o que equivale a um carro norte-americano que roda anualmente cerca de 1,9 milhão de quilômetros.
Cerca de 45% do CO2 liberado no mundo geralmente provêm da produção de calor e energia. Durante a crise, as pessoas continuaram precisando desses itens como sempre precisaram. As emissões provenientes do uso de energia caíram cerca de 15% — o que se traduz em cerca de 3,3 megatons de CO2 que deixaram de entrar na atmosfera todos os dias.
Em suma, a redução nas emissões diárias nos permitiu, como planeta, voltar aos níveis de 2006. A meta de 1,5 graus Celsius do IPCC sugere que precisamos voltar aos níveis de emissão da década de 1990 em cerca de uma década.
Fonte: National Geographic Brasil