Esta temporada de furacões já está batendo recordes. A 25atempestade da temporada a receber um nome, Delta, se aproxima da recém-devastada Costa do Golfo — e oficialmente ainda faltam mais algumas semanas até o fim da temporada. As águas quentes do Golfo, que alimentaram o furacão Delta, estão cada vez mais comuns com o aquecimento global, assim como uma conjunção de fatores que podem agravar as grandes tempestades de rápida expansão.
Um novo estudo, publicado no mês passado no periódico Nature Communications, mostra como o efeito de uma tempestade nas águas quentes e rasas do Golfo — aliado ao clima quente — criou as condições propícias para transformar a tempestade seguinte em algo muito mais potente.
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Até agora, o furacão Delta não parece ser uma dessas tempestades. Condições semelhantes, entretanto, podem ter intensificado dois dos maiores furacões desta temporada, Sally e Laura, afirma Brian Dzwonkowski, oceanógrafo da Universidade do Sul do Alabama e autor principal do estudo, embora ele ainda não tenha analisado todos os dados dessas tempestades e não possa confirmar se ocorreram os mesmos processos.
Tempestade tropical
Em setembro de 2018, uma pequena tempestade tropical denominada Gordon atravessou o norte do Golfo do México. Gordon por si só era bastante comum, assim como quase todos os ciclones tropicais, provocou estragos na ordem de milhões de dólares e trouxe muita angústia aos moradores da costa.
Mas pode ter desencadeado uma série de fenômenos que produziu impactos drásticos em uma tempestade muito maior e mais devastadora, algumas semanas depois: o furacão Michael. Essa tempestade se intensificou rapidamente ao se aproximar da costa. Quando atingiu o continente na Flórida, havia se transformado em um assolador furacão de categoria 5, causando 16 mortes e bilhões de dólares de destruição.
Não havia uma nítida correlação entre as duas tempestades. Estavam bastante afastadas no tempo e no espaço — por semanas e centenas de quilômetros de distância. Mas novos dados científicosrevelam que os efeitos da tempestade Gordon, em conjunto com uma onda de calor sobre a região após sua passagem, ajudaram Michael a se fortalecer e se transformar na tempestade mais intensa de todos os tempos a atingir a região de Panhandle na Flórida.
O cenário provocou uma espécie de “sobrecarga na energia elétrica do oceano”, que, por sua vez, alimentou intensamente o furacão, afirma Dzwonkowski.
Os ciclones tropicais se energizam com as águas quentes do oceano. As águas quentes atuam como um armazenamento de energia a ser consumida pelas tempestades, semelhante a uma bateria: quanto mais quentes as águas, ou quanto mais água houver, mais energia poderá ser transferida ao ar que se encontra em cima. Águas frias, por outro lado, podem sugar a energia de uma tempestade.
O sol de verão aquece a camada superior do oceano. Contudo, em geral, a água abaixo da camada quente permanece fria. Quando uma tempestade atravessa o oceano, agitando a água à sua frente com seus ventos, muitas vezes leva a água fria das profundezas à superfície. A interação com a água fria reduz a energia da tempestade e a enfraquece. Os cientistas demonstraram que esse processo aplacou tempestades, como o furacão Irene em 2011, que ainda causou estragos em Nova York ao passar pela região.
“Naquele caso, os ventos foram fortes o suficiente para misturar a água, o que gerou água fria e enfraqueceu a tempestade”, explica Greg Seroka, oceanógrafo da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos.
Mas isso só é possível quando há água fria disponível em algum local próximo — talvez em um grande redemoinho ou abaixo da superfície. Em 2018, a tempestade Gordon eliminou por completo a água fria do sistema.
As águas próximas à Costa do Golfo ao longo da plataforma continental são rasas e a camada superior absorve bastante calor durante o verão com a incidência do sol forte. Em setembro de 2018, as águas superficiais ao longo do caminho de Gordon já estavam mornas, a quase 29o Celsius, bem acima do limite aproximado de 26o Celsius utilizado pelos cientistas como parâmetro para determinar a possibilidade de avanço de uma tempestade tropical.
Normalmente, uma tempestade como Gordon puxaria a água possivelmente fria do fundo para cima. Contudo, como Gordon se dirigiu ao noroeste, partindo da extremidade da Flórida em direção à fronteira do Alabama e Mississippi, onde tocou o solo, a água fria agitada pelo furacão ficou presa na costa e foi empurrada para baixo em vez subir à superfície — e acabou se afastando da plataforma continental rasa. O que restou foi um bloco homogêneo de água superaquecida a cerca de 29o Celsius do fundo à superfície.
A tempestade passou. O verão prosseguiu. De longe, tudo parecia normal. Mas as águas quentes do fundo à superfície não tinham nada de normal.
Em seguida, uma onda de calor passou pela região — não uma onda recorde, mas quente o suficiente para que as águas próximas à costa se aquecessem ainda mais. No fim de setembro, a temperatura média nas águas costeiras ficou ainda mais elevada: a superfície se manteve a mais de 32o Celsius por um período. Os cientistas constataram que águas superficiais do oceano que estão apenas um único grau Celsius mais quente podem provocar tempestades de maior intensidade.
As “águas extremamente quentes na superfície carregavam a energia elétrica do oceano”, afirma Dzwonkowski. E o calor penetra mais profundamente quanto mais demorada a onda de calor.
Então, quando o furacão Michael começou a avançar pela plataforma continental, dirigindo-se quase diretamente ao norte através das águas aquecidas pela tempestade Gordon, não havia água fria disponível para enfraquecê-lo. A tempestade sugou a energia disponível e se intensificou, provocando resultados devastadores.
A cadeia de eventos ocorrida nesse caso não acontece sempre que uma tempestade atravessa a plataforma continental. Tempestades com percursos mais paralelos à costa, por exemplo, não são tão propensas a empurrar água para baixo com tanta eficiência. E a onda de calor posterior foi crucial: se houvesse ocorrido um esfriamento do clima após a passagem da tempestade Gordon, tudo poderia ter sido diferente.
Não se sabe ao certo se esse tipo de interação ocorre com frequência ou se é um fenômeno novo. Tudo o que Dzwonkowski pode afirmar é que a água medida por ele sob o furacão Michael estava ao menos 0,5o Celsius mais quente do que em qualquer outro momento nos 14 anos de registros.
Mas há uma previsão de que futuramente serão cada vez mais comuns as “conjunções de fenômenos”, quando dois fatores climáticos perigosos interagem acentuando o risco, afirma Jane Baldwin, cientista atmosférica do Observatório da Terra Lamont Doherty de Colúmbia. Esse pode ser um exemplo de uma interação anteriormente desconhecida que pode se agravar.
“A conjunção dos dois fenômenos nesse contexto toma uma proporção maior do que a soma deles separados”, conta ela. “É cientificamente interessante — mas também mais assustador da perspectiva de mudanças climáticas.”
Uma série de tempestades maiores
O que essa descoberta mostra, afirma Tom Matthews, cientista climático da Universidade de Loughborough, no Reino Unido, é que nem sequer possuímos uma compreensão completa sobre as formas de interação dos riscos climáticos atuais, o que remete a um futuro repleto de surpresas desagradáveis.
“Existem muitos riscos futuros inesperados, pois o sistema climático inteiro está se modificando e mudando ao mesmo tempo de maneira nunca observada. E a soma de duas interações pode ser muito maior até mesmo do que os efeitos individuais combinados dos perigos.”
Mas existem algumas previsões mais concretas que podemos fazer. Um planeta mais quente implica ondas de calor mais intensas e frequentes, o que tende a aumentar a probabilidade de fenômenos semelhantes aos da sobrecarga do furacão Michael.
Os cientistas demonstraram há muito tempo que o caráter das tempestades tropicais também está mudando: estão reduzindo a velocidade e ficando mais intensas e úmidas no decorrer do tempo. Há também cada vez mais evidências de que a quantidade de tempestades tropicais pode aumentar gradativamente com o aquecimento global e das águas que alimentam as tempestades. Ninguém sabe ainda como essas mudanças poderão afetar fenômenos semelhantes ao furacão Michael.
Mas associar tempestades mais frequentes e intensas com ondas de calor cada vez mais fortes (fenômenos “compostos”, em termos climáticos) quase certamente aumentará os riscos para os humanos, tanto nesse tipo de cenário quanto em outros.
Matthews e seus colegas analisaram outra questão semelhante relacionada aos riscos de tempestades e ondas de calor sucessivas. Eles avaliaram quais são as chances de que um grande ciclone tropical, forte o suficiente para derrubar a infraestrutura elétrica, seja seguido por uma onda de calor úmido extrema? Atualmente, os riscos são baixos. Mas a probabilidade dos dois fenômenos desastrosos se alinharem aumenta drasticamente em um mundo mais quente. Segundo o estudo, se o planeta ficar dois graus Celsius mais quente, é possível que esses riscos em cascata se alinhem em 11 anos de um período de 30 anos; com um aquecimento de quatro graus Celsius, poderão ocorrer todos os anos.
Um mundo com mudanças climáticas será semelhante em alguns aspectos e completamente desconhecido em outros, afirma Matthews. O fato de que tempestades anteriores poderiam influenciar o destino das posteriores não era um conceito evidente ou amplamente compreendido, explica ele: foi, em muitos aspectos, uma surpresa — e já está em andamento em um clima que mudou apenas uma fração do que está previsto.
“As mudanças climáticas trarão ainda mais surpresas”, diz ele.
Fonte: National Geographic Brasil