Num ano marcado por incêndios de grande magnitude no Pantanal, no oeste dos Estados Unidos e em outras partes do planeta, a Amazônia brasileira acabou recebendo menor destaque em comparação ao ano de 2019, considerado um dos piores da última década em termos de ocorrência de fogo. Infelizmente, isso não significa que a situação em 2020 tenha melhorado.
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Ao contrário, até agosto a tendência de focos de calor mensais este ano era similar à observada em 2019 (Figura 1), e se agravou em setembro e outubro, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), apesar da moratória de queimadas decretada pelo governo federal em julho. Consequentemente, na metade de outubro o número de focos de calor observados já ultrapassava em 18% o número registrado até o final do mesmo mês de 2019.
Para ajudar a entender e combater as queimadas, recentemente mais uma ferramenta de inteligência territorial foi criada, o Amazon Dashboard, ou Painel de Controle da Amazônia. Trata-se de uma nova plataforma da Nasa, desenvolvida em conjunto com as universidades da Califórnia em Irvine (EUA) e de Cardiff (Reino Unido), que integra o Global Fires Emission Database. Cobrindo apenas a porção da Amazônia no hemisfério sul, que compreende 85% da Amazônia brasileira, e ainda em fase de validação, o Amazon Dashboard representa um avanço importante na caracterização das áreas atingidas por queimadas.
A partir do uso de sensores VIIRS (Visible Infrared Imaging Radiometer Suite) a bordo de satélites, a nova abordagem consegue não apenas detectar, como também classificar diariamente focos de calor ativos. A metodologia leva em conta a potência radiativa média do foco — ou seja, sua intensidade — e ainda localização, duração e taxa de propagação do fogo, entre outros fatores. A ferramenta divide os focos em quatro categorias, segundo o tipo de área de ocorrência: áreas de desmatamento, sub-bosque, pequenas clareiras e áreas agrícolas, áreas de pastagem e manchas de savana.
Dentre os quatro tipos de área de ocorrência de queimadas identificadas pelo Amazon Dashboard este ano, a maior incidência de focos de calor ocorreu nas áreas desmatadas, com 35% do total de focos (Figura 2). Esse resultado coloca em evidência a cumplicidade entre desmatamento e queimadas, num processo que se inicia com o corte das árvores de valor comercial e é acompanhado pela derrubada das demais espécies arbóreas, geralmente com o uso de tratores e correntes. A seguir, as árvores retiradas e não aproveitadas são empilhadas e deixadas para secar juntamente com tocos, galhos e outros restos lenhosos. Assim, quando a queima acontece, o fogo se concentra num mesmo local, atinge forte intensidade e pode durar vários dias.
Nas áreas de sub-bosque (formada por árvores menores, que não são vistas de cima), a ocorrência de focos de calor foi a menor entre as quatro categorias analisadas, representando 15% do total observado. Ao contrário do que ocorre em áreas desmatadas, no sub-bosque a intensidade do fogo é menor, mas este pode se espalhar lentamente e durar semanas ou meses. Nessas florestas, o fogo em geral se propaga a partir de queimadas descontroladas iniciadas em áreas abertas adjacentes.
Os outros 50% dos focos de calor incidiram sobre pastagens (30%) ou áreas agrícolas (20%). De curta duração, essas queimadas estão geralmente associadas à prática ainda comum de limpeza de áreas com o uso de fogo, tanto para a eliminação de espécies invasoras quanto para a reciclagem de nutrientes. Entretanto, queimadas sucessivas acabam levando ao empobrecimento dos solos. Por outro lado, esse tipo de queima pode também ser iniciado como contrafogo por proprietários rurais, numa reação ao avanço das chamas descontroladas procedentes de áreas vizinhas.
Degradação sistêmica
Embora todas as ocorrências de focos de calor causem preocupação por seus impactos diretos e pela possibilidade de se transformarem em incêndios de difícil controle e grandes proporções, os focos associados ao desmatamento merecem atenção particular, pois evidenciam um problema sistêmico de degradação ambiental. Daí a importância de uma maior compreensão da distribuição territorial desse tipo de foco de calor.
Como mostra a Figura 3, a maior densidade de focos de calor (número de focos por km²) associados ao desmatamento entre janeiro e outubro de 2020 foi observada em áreas não destinadas, sendo 78% superior à densidade nos imóveis rurais. Como terras não destinadas são áreas públicas teoricamente sem ocupação, esse resultado reflete o uso ilegal e a grilagem das quais são alvo. Por outro lado, unidades de conservação (UC) de proteção integral e terras indígenas apresentaram as menores densidades de foco de calor, permanecendo como barreiras ao avanço do desmatamento e fogo, a despeito da crescente pressão que têm sofrido.
Nas UC de uso sustentável, a relativamente elevada densidade de focos de calor em áreas desmatadas está associada principalmente à presença de áreas de proteção ambiental (APA), uma das categorias menos restritivas de unidade de conservação, que pode acomodar várias atividades socioeconômicas desde que seja respeitado um plano de manejo. Quando analisadas como uma categoria em separado, as APA apresentaram a segunda maior densidade de focos de calor associados ao desmatamento (0,23 foco/km2), o que não causa surpresa, tendo em vista a ausência de gestão efetiva e os altos níveis de desmatamento anualmente detectados no interior de muitas delas.
O fogo de origem antrópica, como é o caso na Amazônia, leva à perda de biodiversidade, maior emissão de CO2, dificuldade de regeneração da floresta e alteração no ciclo da água, entre outros distúrbios, inclusive para a saúde humana. Daí a importância de um conhecimento mais profundo de seus impulsores, bem como das áreas e territórios de ocorrência. Nesse contexto, o desenvolvimento e a combinação de ferramentas de inteligência territorial são imprescindíveis para a discussão e implementação de mecanismos que possam efetivamente coibir as perdas tão frequentes, mas nada naturais, de grandes parcelas da vegetação da Amazônia e de outras regiões brasileiras.
*Edenise Garcia é diretora de Ciências e Mariana Soares é especialista em ciências, ambas na The Nature Conservancy (TNC) Brasil.
Fonte: Galileu