Um estudo inédito sobre o possível impacto ambiental provocado pela pavimentação da rodovia BR-319 mostra que o desmatamento acumulado no estado do Amazonas pode aumentar quatro vezes até 2050. Também estima prejuízos econômicos da ordem de 350 milhões de dólares anuais para o agronegócio, com a perda de serviços ambientais. E mais: seria praticamente impossível que o Brasil cumprisse acordos climáticos internacionais, por causa do aumento de emissões de gases de efeito estufa.
A série Amazônia Sufocada, do InfoAmazonia, mostrou na última reportagem sobre as queimadas no estado que os 12 municípios amazonenses sob influência direta da BR-319 somam mais de 40% dos focos de calor registrados em 2020 no Amazonas. A área é um dos pontos de expansão de grilagem de terras na Amazônia brasileira.
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O estudo do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) projeta dois cenários para o período (2017 a 2050), um sem e outro com obras na rodovia.
O primeiro cenário, sem a pavimentação, mantém a média anual de desmatamento dos últimos cinco anos, que é de 1.150 km², segundo dados do Prodes/Inpe. No segundo, com a pavimentação, a rodovia estimularia fluxos migratórios, a expansão de atividades agrícolas e a ocupação de terras, o que elevaria as taxas de desmatamento chegando a 9,4 mil km² anuais em 2050. O desmatamento acumulado no Amazonas de 2017 a 2050 passaria então de 40 mil km² no primeiro cenário, para 170 mil km² no segundo – quatro vezes mais com a pavimentação.
Nesse cenário, as emissões acumuladas de dióxido de carbono (CO₂) mais que quadruplicariam, alcançando 8 bilhões de toneladas em 2050, o equivalente à emissão de 22 anos de desmatamento em toda a Amazônia considerando a taxa de desmatamento do bioma em 2019.
Segundo o líder do grupo de pesquisa, professor Raoni Rajão, a repavimentação da BR-319 vai elevar o valor das terras na região da rodovia. Ele destaca que isso acontecerá inevitavelmente, mesmo se tratando de áreas de domínio público, como terras não destinadas, ou áreas protegidas já estabelecidas.
“O que vai acontecer é uma grande corrida do ouro naquela área, por assim dizer, de empreendedores ilegais, com interesses de expandir a pecuária, de tomar terras e até de ocupar unidades de conservação. Essas pessoas vão fazer isso de maneira mais acelerada com a pavimentação”, destaca Rajão.
O temor dos pesquisadores da UFMG tem precedentes: a BR-163, conhecida como rodovia Santarém (PA) a Cuiabá (MT). A estrada foi criada no mesmo período que a BR-319 do Amazonas e, hoje, é o centro de diversos conflitos e crimes ambientais na Amazônia. A Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim é uma das mais pressionadas do Brasil e o local foi cenário do chamado Dia do Fogo em 2019.
“As imagens de satélite mostram claramente que grande parte do desmatamento ali na região da Flona do Jamanxim, em Novo Progresso, aconteceu após a definição da unidade de conservação e não antes”, destaca Rajão.
Para Raoni, a presença de colonos desde o período anterior à criação da área de proteção pode ser usada como justificativa para o desmatamento dos locais. “Nós tememos que, com a pavimentação da BR-319, as unidades conservação que foram criadas naquela área como o Parque Estadual de Matupiri, o Parque Nacional Nascentes do Lago Jari, entre outros percam de fato a sua capacidade de evitar o desmatamento“, alerta o pesquisador.
Organizações ambientais também temem que, com as obras, a pressão aumente sobre as 69 terras indígenas e 42 unidades de conservação da região, que é um dos últimos refúgios de biodiversidade intocada do bioma.
Rajão aponta que as cidades que de alguma forma se beneficiarão com a pavimentação são as que estão nos extremos da rodovia, como Manaus, Humaitá e Apuí. Nos municípios fora da capital do Amazonas, as áreas que mais têm chances de crescer economicamente são as de assentamento. O Amazonas tem 145 assentamentos. Humaitá concentra nove e Apuí dois, segundo informações são do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) até 2017.
“Humaitá tem uma interação forte com a Transamazônica até Apuí, onde tem áreas de assentamento, que não são protegidas por unidades de conservação, e áreas não destinadas, que são ainda mais vulneráveis ao desmatamento ilegal”, diz.
O “agro-suicídio” em curso por causa do desmatamento, que sabidamente afeta as chuvas em outras regiões do país além da Amazônia, “mais que inviabilizaria o alcance das metas assumidas pelo Brasil no Acordo de Paris”, aponta Rajão.
O desmatamento levaria a “perda de vegetação nativa, afetando diversos serviços ambientais, sobretudo a regulação de chuvas que cai sobre regiões estratégicas para o agronegócio brasileiro”. A nota técnica da UFMG estima em mais de 350 milhões de dólares anuais as perdas em geração de energia hidrelétrica, cultivo de soja e pecuária.
O cenário é provável, dadas as promessas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de tocar obras na estrada e a resistência em aderir a acordos climáticos. Os primeiros 198 quilômetros da BR-319, que começa em Manaus (AM), estão pavimentados, assim como como os 164 quilômetros finais, entre Humaitá (AM) e Porto Velho (RO). A parte mais crítica da rodovia é o chamado “Trecho do Meio”, que tem 405 quilômetros de extensão, do quilômetro 250 ao 655, e que fica entre os rios Madeira e Purus.
O agronegócio tem reassumido papel de relevância na economia brasileira. Segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), em 2019, o setor contribuiu com R$ 1,55 trilhão ou 21,4% do PIB brasileiro. A maior parcela veio da agricultura, que corresponde a 68% desse valor, ou R$ 1,06 trilhão, e a pecuária corresponde a 32%, ou R$ 494,8 bilhões.
Em 2020, o agronegócio foi um dos setores que mais gerou postos de trabalho, com quase 100 mil empregos. O setor constitui um dos “bês” da bancada “Boi, Bíblia e Bala” do Congresso Nacional, que concentra muitos apoiadores de Bolsonaro, sendo o que mais pressiona por obras de infraestrutura e mudanças na legislação ambiental no país.
Frentes econômicas mais amazônicas
Talvez seja possível conciliar a repavimentação da BR-319 com sustentabilidade econômica e conservação da floresta. É o que acredita Carlos Durigan, ambientalista e diretor da Wildlife Conservation Society (WCS Brasil). Para ele, a floresta pode, sim, receber impactos da estrada, mas que podem ser controlados ao longo do traçado da rodovia. A repavimentação poderia, inclusive, favorecer o desenvolvimento de “frentes econômicas mais amazônicas”.
“Se conseguirmos controlar, por exemplo, a ocupação e o desmatamento, podemos ter o desenvolvimento positivo de frentes econômicas mais amazônicas, como a pesca, a exploração sustentável da floresta com turismo e pagamentos por serviços ambientais”, destaca Durigan.
“Quanto mais a gente mantiver os atributos amazônicos daquela região, mais a gente vai conseguir desenvolver oportunidades de melhorias sociais e econômicas a partir de um modelo amazônico e não de um modelo exógeno, cujo modus operandi destruiu boa parte dos outros biomas brasileiros”, avalia o ambientalista.
O caminho apontado pelo diretor da WCS Brasil está alinhado com o que diz o estudo da UFMG, que suscita a racionalidade econômica da obra. “Estudos já questionaram a racionalidade econômica dessa obra uma vez que o rio Madeira é a principal via de transporte para escoamento da produção agropecuária e Manaus já se encontra bem servida por transporte fluvial. O projeto [de repavimentação da BR-319] é apontado como inviável economicamente por somente um terço do investimento retornar como benefícios [para a população].E isso sem contabilizar as perdas econômicas pelo desmatamento”, destaca o estudo da universidade mineira.
A tal corrida do ouro, que, na verdade, é por terras, já acontece. De acordo com a pesquisadora do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Jolemia Chagas, que também é moradora do município de Manicoré (AM), que fica no traçado da rodovia, o Amazonas já está consolidado como fronteira do arco do desmatamento.
“O arco vem pela Transamazônica e avança por meio do distrito de Realidade, que se formou a partir de outro distrito, o de Matupi. O asfaltamento da BR-319 não pode prosseguir sem garantir as salvaguardas que deveriam ser asseguradas no processo de licenciamento, assim como a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais, que não foi realizada”, diz.
“Tudo isso trará muita destruição a todo o território cortado pela rodovia, é uma questão de tempo. A caixa de Pandora está sendo aberta”, destaca Jolemia Chagas.
Em setembro, quando anunciou a realização de obras da rodovia, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, garantiu que as intervenções seguirão orientações de órgãos ambientais e “devem servir de modelo na preservação do meio ambiente”, pois o projeto “inclui novos dispositivos de drenagem e recuperação de áreas degradadas”.
Além disso, “mais de 100 mil mudas nativas serão plantadas no segmento, 20 passagens de fauna aéreas [caminhos elevados como passarelas, pontes ou redes] e 12 subterrâneas serão instaladas para passagem de animais que cruzam a estrada”.
As medidas de recomposição da vegetação, insuficientes para as dimensões amazônicas da obra, equivaleriam à restauração de cerca de 180 hectares de florestas, área inferior à do Parque Ibirapuera, na capital paulista.
Fonte: Deutsche Welle