Em 916, o rei Carlos 3º da França recebeu um presente que o agradou muito.
Julius de Berry, da Antuérpia, o presenteou com uma travessa cheia de morangos silvestres maduros. Como recompensa, o rei deu o nome de “Fraise” (morango, em francês) à família.
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Oito séculos depois, outro rei da França, Luís 14, estava preocupado com o fato de seu país não estar indo bem na Guerra da Sucessão Espanhola e temia que um tratado de paz deixasse a corte de Versalhes sem acesso às riquezas das Américas.
Em 1711, ele decidiu enviar um espião ao sul do Novo Mundo para coletar informações. O escolhido acabou por ser ninguém menos que Amedée François Frézier.
O sobrenome havia mudado um pouco, pois a família se estabelecera na Escócia na Idade Média, como parte da comitiva do embaixador francês, e lá se tornou Frazer. De volta à França, nova mudança: Frézier.
Mas Amedée era um descendente de Julius, aquele que havia presentado Carlos com os morangos silvestres.
E, em uma dessas curiosas coincidências da história, sua viagem à América do Sul mudaria para sempre aquela iguaria de que o monarca tanto gostava.
Comerciante de espionagem
Frézier conta em seu relato Uma viagem ao Mar do Sul e ao longo das costas do Chile e do Peru, nos anos 1712, 1713 e 1714 que se fez passar por marinheiro mercante para cumprir a sua missão de espionagem sem levantar suspeitas.
E ele concluiu seu encargo sem maiores problemas.
Mas o resultado mais importante de sua jornada não seria evidente até alguns anos depois e derivou de seu encontro com algo que o cativou quando passou pelas terras Mapuche: uma planta que os nativos chamavam de quellghen ou kellén.
“Eles cultivam campos inteiros de uma espécie de morango diferente da nossa por causa das folhas mais arredondadas, carnudas e muito peludas”.
“Seus frutos são geralmente do tamanho de uma noz e, às vezes, como um ovo de galinha. Eles são de cor vermelho-esbranquiçada e um pouco menos delicados que os nossos morangos da floresta.”
Mas, antes de continuarmos a contar esta história, vale a pena uma pequena digressão para falar sobre essas frutas peculiares — e entender por que as que os indígenas cultivavam há cerca de mil anos naquela faixa de terra entre os Andes e o Pacífico chamaram tanto a atenção do espião francês.
Peculiaridade
Por que peculiares?
Porque, embora pareçam bagas, os morangos são, na verdade, os receptáculos espessos da flor da planta, que vem da família das rosas.
As “sementes” que pontilham a superfície do morango são, na verdade, aquênios, um tipo de fruto seco que algumas plantas produzem na natureza, no qual o ovário maduro contém uma única semente.
Seu nome genérico, Fragaria, é derivado de fragum, “perfumado”, devido ao aroma da fruta.
É difícil estabelecer a origem dos morangos, pois espécies endêmicas foram encontradas em quase todas as partes do mundo, exceto na Austrália, nas terras a leste dos Andes, no Oriente Médio e na África (embora haja evidências tão antigas de seu cultivo no norte da África e do Oriente Médio, que talvez também sejam nativos dessas regiões).
Percorrendo o mundo
Estudos de seu genoma revelaram uma história interessante: os morangos europeus são diplóides, ou seja, têm dois conjuntos de cromossomos em suas células — como a maioria das espécies, incluindo os humanos: um do pai e outro do mãe.
Mas morangos americanos são octoplóides, ou seja, têm oito cópias completas do genoma que foram feitas por várias espécies de pais diferentes.
Os pesquisadores acreditam que os morangos podem ter viajado pela Ásia (onde espécies com quatro e seis conjuntos de cromossomos são encontradas) e alcançado a costa oeste da América do Norte através do Estreito de Bering 1,1 milhão de anos atrás. Ali teria surgido um híbrido com as espécies existentes.
Acredita-se que de lá os pássaros carregaram aqueles morangos octoplóides para o que num futuro muito distante seriam o Chile e o Havaí.
O fato é que, na época em que os humanos surgiram no planeta, já havia morangos silvestres de vários tipos em todo o Hemisfério Norte e também naquela terra ao sul onde os picuches e mapuches os domesticariam e cultivariam séculos antes da chegada de Frézier.
Souvenir
Os europeus nativos demoraram mais para cultivar morangos silvestres em seus jardins, alguns por seu valor ornamental.
Sabemos que em 1368 o rei Carlos 5º instruiu seu jardineiro a plantar 1,2 mil morangos nos jardins reais do Louvre, em Paris, e que em 1375, no Chateau de Couvres dos Duques de Borgonha, havia quatro grandes áreas dedicadas ao cultivo de morangos, tão apreciados pela duquesa que quando ela viajava, seus serviçais lhe enviavam as frutas.
Cultivados ou silvestres, os morangos exerciam fascínio sobre os europeus. Mas apesar de a intensidade de sua cor e sabor, eles costumavam ser pequenos.
Por isso, Frézier se entusiasmou tanto ao ver o que mais tarde seriam chamados Frugaria chiloensis e não resistiu à tentação de levar cinco mudas consigo de volta à Europa.
O que ele não sabia é que todas as mudas eram fêmeas, por isso, quando chegaram à França, não davam frutos.
Et voilà!
A Fragaria chiloensis não foi o única espécie de morango americano a cruzar o Atlântico e completar essa volta ao mundo que começou há milhões de anos para conhecer seus primos diplóides na Europa.
Não está claro quando, mas a Fragaria virginiana, que cresce nos Estados Unidos e Canadá, também chegou à França, mas, embora se destacasse pela intensidade de sua cor “morango escarlate” e de seu sabor, também era pequena. Passou, assim, a ser apenas mais uma mera curiosidade.
Quando parecia que os morangos chilenos teriam o mesmo destino que os americanos, um jovem botânico descobriu por que as plantas que Frézier trouxera não davam os mesmos frutos fabulosos em solo parisiense.
Em 1764, Antoine Nicolas Duchesne presenteou o rei Luís 15 com morangos tão grandes e bonitos que o monarca contratou um ilustrador para pintá-los.
Duchesne, que tinha 17 anos na época, havia feito as plantas chilenas darem frutos polinizando-as com a espécie europeia Fragaria moschata, mas as sementes dos morangos que ele mandou ao rei não eram viáveis.
Embora tenha continuado a estudar essas plantas e a intuir por meio delas conceitos de evolução que o britânico Charles Darwin determinaria um século depois, ele não conseguiu solucionar o problema até 1766, após notar que jardineiros e fazendeiros na Europa conseguiram produzir frutos grandes e aromáticos.
Duchesne foi o primeiro a entender o que havia acontecido: intencionalmente ou não, morangos da Virginia foram plantados perto dos chilenos, estimulando-os a produzir frutos, e as sementes desses frutos, por sua vez, produziram plantas híbridas vigorosas e resistentes.
O botânico francês batizou os frutos desses híbridos de Fragaria ananassa, ou morango-abacaxi, porque, segundo ele, “o perfume da fruta é muito parecido com o do abacaxi” .
Esses morangos, do tamanho de suas mães chilenas, mas com uma cor vermelha mais escura e um sabor mais pronunciado, ganharam o mundo.
Não é exagero: é muito provável que todos e cada um dos morangos que você comeu na vida sejam descendentes dos kellén que os Mapuches cultivaram.
Fonte: BBC