Mais de 3 mil requerimentos minerários sobrepostos a terras indígenas da Amazônia Legal tramitam no sistema da Agência Nacional de Mineração (ANM). O órgão defende que o protocolo de um pedido de mineração não significa a sua aprovação. Porém, um levantamento do projeto Amazônia Minada, do InfoAmazonia, encontrou pelo menos 58 requerimentos de pesquisa ou lavra de minério aprovados pela agência, mesmo afetando terras indígenas, algo proibido pela Constituição.
Cada autorização da ANM tem um prazo, entre dois e cinco anos de duração, podendo ser prorrogado. No levantamento que encontrou os 58 processos autorizados foram considerados apenas os requerimentos que estavam válidos em 10 de novembro de 2020.
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A recordista de permissões da ANM é a mineradora Anglo American Níquel, dona de quase metade das autorizações. São 27 pedidos válidos de pesquisa de cobre em terras indígenas do Mato Grosso e do Pará. O principal alvo da gigante inglesa, que teve um resultado operacional de 10 bilhões de dólares em 2019, é a terra Sawré Muybu (Pimental), no sudeste do Pará, com 13 pedidos. A terra é tradicionalmente ocupada pelo povo Munduruku, em áreas dos municípios de Itaituba e Trairão.
Além das 27 autorizações, o levantamento apontou quase 150 requerimentos da mineradora inglesa, feitos diretamente pela Anglo ou através de empresas menores nas quais ela tem participação. Um relatório publicado em novembro pela Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pela Amazon Watch mostra que a Anglo recebe investimento de algumas das maiores instituições financeiras do mundo, baseadas em países como Estados Unidos, China, Japão, Austrália, Suíça, Canadá, França, Alemanha e Holanda.
Em nota, a Anglo informa que “desistiu de todos os requerimentos de pesquisa mineral localizados dentro das terras indígenas, mas diversos desses pedidos ainda constam do cadastro da Agência Nacional de Mineração”. Em seguida, no mesmo comunicado, a empresa admite que “alguns requerimentos de pesquisa vigentes podem margear terras indígenas, apresentando blocos com pequenas interferências nesses territórios”, mas volta a colocar a responsabilidade sobre o governo federal: “Em casos assim, é papel da ANM demarcar esses blocos fora dos territórios indígenas.”
Ameaça real a áreas protegidas
A terra Sawré-Muybu (Pimental), precisamente na margem do rio Tapajós, também é alvo de uma das duas autorizações de lavra garimpeira encontradas no levantamento do Amazônia Minada. A Cooperativa de Extração Mineral do Vale do Tapajós tem direito a explorar cassiterita até julho de 2022.
Mesmo com sobreposição em terra indígena, o requerimento não possui aviso de interferência na terra Sawré-Muybu (Pimental). A primeira autorização foi dada ainda em 2012, e renovada em 2017 por mais cinco anos. Mas o processo está suspenso desde o dia 27 de fevereiro de 2020 por causa de uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF) no Pará, que questiona diversos requerimentos minerários em unidades de conservação no Estado. Além de atingir a TI, o pedido da cooperativa interfere em área da Floresta Nacional Itaituba I, que não possui plano de manejo que regule a atividade mineradora na região.
O segundo requerimento de lavra garimpeira é da Cooperativa Estanífera de Rondônia. A permissão para explorar ouro na terra Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, vale até fevereiro de 2023. Não há mais informações sobre esse processo no sistema da ANM.
Além de grandes mineradoras e cooperativas, há donos de pedidos autorizados sem nenhuma ligação com o setor de mineração, mas cujos requerimentos foram autorizados pela ANM. Esse é o caso de Cleon Tadeu de Carvalho, dono de uma borracharia em Aripuanã, no interior do MT, que recebeu em 19 de junho uma permissão para pesquisar manganês na TI Arara do Rio Branco nos próximos dois anos. É o único caso de título concedido pela ANM a requerimento dentro de TI protocolado em 2020.
A reportagem tentou contato com Cleon de Carvalho, com a Cooperativa de Extração Mineral do Vale do Tapajós e com a Cooperativa Estanífera de Rondônia nos telefones informados na Receita Federal, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.
Esses requerimentos, principalmente os autorizados, representam uma ameaça real a regiões que deveriam ser protegidas. Segundo uma pesquisa do Greenpeace realizada no primeiro semestre, 72% da atividade garimpeira realizada na Amazônia entre janeiro e abril deste ano foi realizada dentro de terras indígenas. Esse cenário pode ser ainda pior que o projeto de lei 191/2020, de autoria do Governo Federal, que prevê a liberação de exploração de terras indígenas, seja aprovado no Congresso.
O ambientalista Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, aponta a gravidade dessa atividade contra povos indígenas, especialmente em um período de pandemia de covid-19.
“Isto [a mineração] tem uma repercussão, obviamente que em primeiro lugar, na questão humana e de direitos dessas populações, mas ao mesmo tempo também afeta negativamente a imagem do país porque mostra que nós temos um governo que não é compromissado nem com a floresta, nem com a democracia, nem com a defesa de direitos e nem com a Constituição brasileira. A expressão disso é o PL 191 que foi apresentado pelo presidente na Câmara dos Deputados”, diz Astrini.
O MPF no Pará apresentou oito ações civis públicas, em novembro do ano passado, para obrigar a ANM a inferir imediatamente todos os processos minerários que afetem TI. Para os procuradores, esses requerimentos conferem “aparente legalidade” a atividades de garimpo irregular. A Justiça Federal em Santarém (PA) deu liminar favorável à ação do MPF em sentença de agosto deste ano.
Omissão do governo
Há um consenso na comunidade científica sobre a grande quantidade de informações sobre a floresta amazônica, e de como isso pode ser usado para proteger a região. Coordenador do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o professor de cartografia Britaldo Soares Filho assinou com outros pesquisadores um artigo recente na revista One Earth analisando justamente os dados disponíveis sobre a Amazônia para calcular o impacto econômico do PL 191/2020..
Soares Filho defende que há diversas maneiras para fiscalizar a floresta amazônica, mas que o governo brasileiro não atua como deve. Em vez disso, diminui recursos de órgãos fiscalizadores. A ANM, por exemplo, está há dez anos sem realizar concurso público para contratar novos servidores.
“A ANM, que deveria regular o setor, está sendo sucateada há anos. Já temos tecnologia e conhecimento para controlar e evitar qualquer tipo de pedido de mineração em áreas protegidas, mas não há qualquer interesse desse governo em fiscalizar de verdade esses requerimentos minerários”, afirma o pesquisador.
Além de não fiscalizar, a ANM parece se esforçar para esconder informações. Em 29 de maio, o projeto Amazônia Minada encaminhou um pedido por Lei de Acesso à Informação solicitando todos os requerimentos sobrepostos a terras indígenas no país, com indicação de quais processos tiveram autorização concedida pelo órgão. A solicitação foi negada em todas as instâncias da ANM. Em seguida, recorremos para a Controladoria-Geral da União, que em 13 de agosto deu parecer favorável ao pedido inicial.
No entanto, mesmo com a decisão da CGU, a resposta da agência, enviada no mês seguinte, não incluiu os dados de pedidos autorizados. Para chegar nos 58 requerimentos concedidos, a equipe do Amazônia Minada investigou por dois meses mais de 3 mil requerimentos sobrepostos a terras indígenas da Amazônia legal.
Na última quinta-feira, 19 de novembro, a reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da ANM pedindo um posicionamento sobre os 58 requerimentos autorizados. No pedido, feito por e-mail, encaminhamos a lista com todos os processos encontrados no levantamento. Não houve retorno do órgão até a publicação desta reportagem.
Fonte: Deutsche Welle