Uma pessoa pode tomar mais de um tipo de vacina contra a covid-19?

Com algumas autorizações de vacina sendo concedidas, haverá opções de escolha. Mas tomar mais de uma vacina pode aumentar a imunidade?

Enfermeira prepara a vacina Gam-COVID-Vac (Sputnik V) contra covid-19 no 7o Ambulatório Municipal em Simferopol, Crimeia, em 15 de dezembro. Rússia inicia campanha de vacinação para funcionários das áreas de educação, saúde e serviços sociais municipais.
FOTO DE SERGEI MALGAVKO, TASS/ GETTY IMAGES

CHEGARÁ O DIA em que todos que esperam por uma vacina contra covid-19 poderão tomá-la. Sendo assim, as pessoas podem questionar algo que antes parecia improvável: devo tomar uma segunda vacina só por precaução?

À medida que a pandemia avança, isso pode de fato ser uma opção, já que mais vacinas serão aprovadas nos próximos meses. Na sexta-feira, a Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) dos Estados Unidos autorizou o uso emergencial da vacina produzida pela Moderna — apenas uma semana após conceder autorização semelhante para a vacina da Pfizer e BioNTech.

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Mais de 200 vacinas contra covid-19 estão em desenvolvimento em todo o mundo, envolvendo oito plataformas de tecnologia diferentes, desde as inovadoras produzidas com material genético, como DNA ou RNA mensageiro, até variedades clássicas produzidas a partir de versões inativadas do coronavírus. A dúvida é se tomar mais de um tipo de vacina aumentará a imunidade, oferecendo uma proteção mais duradoura.

Até o momento, tomar duas vacinas é sobretudo um experimento mental. O fornecimento limitado atual torna improvável o acesso a duas vacinas diferentes contra covid-19, a menos que uma pessoa participe de diversos ensaios clínicos ou tente enganar os prestadores autorizados. E não se sabe se os planos de saúde pagariam por mais de uma vacina. Mas alguns cientistas estão intrigados com a possibilidade.

“Essa não é uma pergunta absurda”, diz Florian Krammer, professor de vacinologia na Escola de Medicina Icahn do Hospital Monte Sinai, na cidade de Nova York. “Fazemos isso o tempo todo em pesquisas. Utilizamos diferentes plataformas de vacinas porque, às vezes, obtemos resultados interessantes.”

Potencializando a resposta imune

Em teoria, é assim que a proteção dupla das vacinas contra covid-19 funcionaria: a vacina é composta por fragmentos do vírus que não adoecem as pessoas — mas são suficientes para ativar uma resposta imune.

Muitas vacinas infantis comuns exigem o que chamamos de reforço, uma segunda dose, meses ou anos depois, que atua como um suporte para garantir que o corpo recebeu a primeira mensagem e tenha instruções claras para combater uma futura invasão de um germe específico. É uma forma de criar outro bloqueio de proteção e fortalecer a memória imunológica.

“Quando há suspeita de que a eficácia da vacina está reduzindo, a medida mais direta é tomar um reforço”, diz Alessandro Sette, professor do Centro de Pesquisa de Doenças Infecciosas e Vacinas do Instituto de Imunologia La Jolla, na Califórnia. No entanto, após receber a primeira dose, o corpo já está preparado. “Um reforço induz uma resposta de recapitulação que se inicia a partir da memória imunológica. Essa é a beleza da ciência”, conta Sette.

O que não sabemos é se a resposta induzida seria ainda mais forte com uma vacina diferente contra o coronavírus. Em imunologia, o conceito é chamado de “dose-reforço heterólogo”, e alguns estudos sugerem que pode ser uma maneira mais eficaz de criar sistemas de vacinação, especialmente para doenças desafiadoras como malária, tuberculose e aids.

A ideia é que a população possa se beneficiar do melhor oferecido por duas plataformas de vacinas, obtendo diferentes subconjuntos de células T, agentes do sistema imunológico que atuam como “eliminadores” e “auxiliares” e desempenham um papel fundamental no ataque a um vírus indesejado. Essas respostas divergentes, então, trabalhariam em harmonia para fornecer uma imunidade sólida.

Ainda não está claro quais combinações de categorias de vacinas são melhores ou em que ordem. Mas essa possibilidade de administração de dois métodos de vacina tem sido cada vez mais explorada nas últimas duas décadas, à medida que os cientistas descobriam novos tipos de sistemas de aplicaçã0 de vacina.

Diversidade de vacinas

A ciência que envolve a mistura e combinação de vacinas está prestes a obter um reforço próprio. Isso porque a infinidade de inovações deste ano oferece novas oportunidades para estudar a interação entre os diferentes tipos de vacinas contra covid-19.

Por exemplo, as vacinas Pfizer-BioNTech e Moderna contém fragmentos de RNA mensageiro, uma plataforma de vacina que nunca havia sido autorizada para uso humano até este mês. Outra vacina candidata que está em testes na Universidade de Oxford e na empresa farmacêutica AstraZeneca utiliza tecnologia de vetor viral, que envolve a transferência do código genético da proteína de espícula do SARS-CoV-2 — componente que permite ao coronavírus invadir as células — para um adenovírus enfraquecido. Todos esses métodos são administrados em duas doses separadas em intervalos de semanas.

Um possível motivo para escolher vários tipos: alguns pesquisadores estão preocupados com as plataformas de vetores virais devido à possibilidade de um organismo desenvolver imunidade ao próprio adenovírus. Por exemplo, o vetor utilizado pela AstraZeneca e Oxford é um adenovírus que infecta chimpanzés. “Não temos imunidade contra eles, mas podemos desenvolver imunidade após a primeira dose”, explica Krammer, caso em que a segunda dose pode ser menos eficaz.

Por outro lado, a Rússia, a Johnson e Johnson e a empresa de biotecnologia chinesa CanSino Biologics estão desenvolvendo vacinas contendo adenovírus humano, que geralmente causam resfriados comuns. É possível que pessoas que tiveram muitos resfriados ao longo da vida já possam ter imunidade antes mesmo de receber a vacina.

Em todos esses casos, pode ser sensato fazer o acompanhamento com uma segunda vacina, como a desenvolvida pela empresa de biotecnologia Novavax, de Maryland, que fornece proteínas de espícula de bioengenharia por meio de nanopartículas, que poderia fornecer um grande reforço, diz Krammer.

Mas a segurança de qualquer combinação não foi estabelecida, e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos alertaram recentemente contra a combinação da vacina Pfizer-BioNTech com “outras vacinas contra covid-19”.

Brianne Barker, professora associada de biologia que estuda imunidade e vírus na Universidade Drew, em Madison, Nova Jersey, está entre os cientistas que reconhecem que poderá ser impossível as autoridades de saúde evitarem a mistura acidental de marcas de vacinas.

“Se uma pessoa foi ao médico e recebeu uma dose, talvez não saiba que recebeu a vacina da Pfizer”, diz ela. Se ela for a um médico diferente para tomar a segunda dose, pode inadvertidamente receber a vacina da Moderna.

Não necessariamente a combinação seria perigosa, visto que nossos corpos frequentemente encontram o mesmo vírus diversas vezes ao longo de nossas vidas. No entanto, Barker adverte que as pessoas não devem perder a segunda dose de sua série original de vacinas. “Tomar duas vacinas diferentes contendo diferentes fragmentos do vírus provocaria duas respostas imunes distintas em vez de um reforço da primeira”, explica ela.

Barker também está curiosa para saber se tomar duas vacinas diferentes seria benéfico. “Pode aumentar ainda mais a resposta imune, mas não está claro se esse aumento é importante”, diz ela. “Mais vacinas não necessariamente durariam mais tempo no organismo. Em um certo ponto, uma resposta imune suficiente seria obtida, então um aumento não acrescenta em nada.”

O tempo de eficácia de todas as vacinas contra covid-19 é uma questão fundamental ainda pendente com relação às vacinas. Até que os dados comecem a ser divulgados, ninguém sabe se tomar um segundo tipo de vacina seria uma perda de tempo e dinheiro, ou se os planos de saúde cobrirão mais de um pedido de vacina. Embora o governo dos Estados Unidos tenha se comprometido a disponibilizar gratuitamente a vacina inicial para todos os residentes do país, é muito cedo para saber se o sistema de vacinação incluirá futuras doses com outras marcas, afirma Karyn Schwartz, pesquisadora sênior da Kaiser Family Foundation, em Washington, D.C., que estuda a cobertura dos planos de saúde nos casos de covid-19.

Como identificar a necessidade de tomar outra vacina

Ao tomar uma vacina nesse meio tempo, não será imediatamente perceptível se a imunidade à covid-19 reduzirá. Os níveis de anticorpos dos participantes de ensaios clínicos de vacinas estão sendo monitorados ao longo do tempo. Uma outra forma seria realizar um exame de anticorpos para detectar quando essas proteínas são geradas em resposta a uma vacina ou infecção.

O maior desafio é que a presença de tais anticorpos não significa necessariamente que uma pessoa está protegida contra a covid-19, explica Dan H. Barouch, diretor do Centro de Virologia e Pesquisa de Vacinas do Beth Israel Deaconess Medical Center em Boston. Outra pesquisa sugere que a presença persistente de células B, que produzem anticorpos, e de células T também desempenha um papel essencial. A forma como os anticorpos são medidos atualmente em exames clínicos padrão pode não ser um bom indicativo de imunidade, diz Barouch, acrescentando: “precisamos saber quais respostas imunes são responsáveis pela proteção”.

Talvez a proteção mediada pela vacina contra covid-19 seja eficaz por toda a vida, assim como a vacina do sarampo. Ou tomar uma segunda versão de uma vacina pode servir como uma dose de reforço daqui a uma década — semelhante à forma como a vacina contra poliomielite é administrada atualmente.

Quando Angela Rasmussen, virologista do Centro de Ciência e Segurança de Saúde Global da Universidade de Georgetown em Washington, D.C., era criança, recebeu a vacina oral contra poliomielite contendo o vírus inativado desenvolvida por Jonas Salk no início da década de 1950.

Quando adulta, teve que receber outra dose como condição para trabalhar em um laboratório de doenças infecciosas, e recebeu uma vacina viva atenuada com base na pesquisa iniciada por Albert Sabin. Vacina fornecida nos Estados Unidos desde 2000. “Não é novidade que as pessoas recebam reforços à medida que as vacinas mudam”, diz ela.

Mas a grande diferença é que quando ela recebeu sua segunda vacinação contra poliomielite, a formulação de Sabin tinha mais de meio século de dados de segurança por trás.

“Acho que não temos informações suficientes para que as pessoas comecem a misturar e combinar as vacinas contra covid-19”, conclui Rasmussen. “É um novo vírus com uma nova vacina. Não devemos nos precipitar.”

Fonte: National Geographic Brasil