Para os habitantes do Tibete, algumas montanhas e geleiras são sagradas. E não devem ser perturbadas, ou haverá consequências catastróficas.
Embora muitos cientistas não sigam essa crença, eles compartilham o temor de que algo grave esteja acontecendo em uma região montanhosa vital para bilhões de pessoas.
Leia também:
Trata-se da região do Himalaia conhecida como Hindu Kush ou Indocuche (HKH, na sigla em inglês), uma vasta área montanhosa que inclui o planalto tibetano.
“Ela se estende por mais de 100 mil quilômetros quadrados e abriga mais de 50 mil geleiras“, afirma à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, Anna Sinisalo, coordenadora do programa de criosfera (áreas cobertas de gelo) do Centro Internacional para o Desenvolvimento Integrado das Montanhas (ICIMOD), uma organização intergovernamental com sede em Katmandu, capital do Nepal, dedicada ao estudo e proteção dessa região montanhosa.
“O HKH também é chamado de Terceiro Polo porque contém as maiores reservas de gelo depois das regiões polares”, acrescenta Sinisalo.
As geleiras chinesas, por exemplo, representam cerca de 14,5% do total global, de acordo com a Academia de Ciências da China.
E algo importante em relação às montanhas do Hindu Kush é que elas abastecem dez dos maiores rios da Ásia, incluindo o Ganges, o Amarelo, o Yangtze e o Mekong.
“O que importa é que 240 milhões de pessoas vivem nessas regiões montanhosas e que um quarto da população mundial depende dos rios que nascem no HKH”, diz Sinisalo.
Estima-se que cerca de 1,9 bilhão de pessoas vivam nas bacias dos rios abastecidos por geleiras do HKH, também chamado de “caixa d’água da Ásia”.
Mas essas geleiras vitais estão derretendo em um ritmo acelerado.
E há um medo crescente de que a perda de gelo cause escassez de água e leve a migrações em massa e a conflitos regionais.
Quão rápido as geleiras do Terceiro Polo estão derretendo?
A redução no volume e o recuo das geleiras foram documentados em um estudo recente do ICIMOD, o HKH Assessment 2019. E no relatório sobre oceanos e criosfera divulgado no mesmo ano pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
“As taxas de derretimento das geleiras variam. Algumas, por exemplo em Karakoram, não mostram grandes mudanças, mas outras no leste do Himalaia apresentam as maiores perdas”, explicou à BBC News Mundo Joseph Shea, um glaciologista da Universidade de Northern British Columbia, no Canadá.
“E estudos recentes indicam que o ritmo de derretimento acelerou nas últimas quatro décadas.”
Tanto Shea quanto Sinisalo fazem parte do grupo de quase 200 autores do HKH Assessment.
Segundo Sinisalo, há estudos que estimam que “no Terceiro Polo, se perdeu uma média de 16,3 gigatoneladas de gelo por ano entre 2000 e 2016”.
E, de acordo com o HKH Assessment 2019, a perda de massa de gelo aumentou desde 2000 e vai acelerar no futuro.
“Há vários modelos que estimam a perda de volume de gelo até o fim do século. Mas o HKH Assessment concluiu que se o aumento da temperatura do planeta não ultrapassar 1,5ºC, a perda de volume de gelo chegará a 36%. E essa perda excederá 60% se as emissões atuais continuarem.”
Por sua vez, Shea projeta que, se nos basearmos na tendência atual das emissões de carbono, haverá “uma redução de 50% no volume das geleiras até o fim do século”.
“E se as emissões aumentarem ainda mais, a perda será entre 70% e 80% até 2100.”
Por que o derretimento acelerou?
Uma das razões para a rápida redução do gelo é que o Terceiro Polo, assim como os outros dois polos, está aquecendo em um ritmo mais acelerado do que o resto do planeta.
Mesmo que se consiga manter o aumento da temperatura global abaixo de 1,5ºC, essa região terá um aumento de mais de 2ºC. E se as emissões não forem reduzidas, o aumento pode chegar a 5ºC, de acordo com o HKH Assessment.
“Há várias razões pelas quais as cadeias de montanhas estão aquecendo mais rapidamente do que outras partes do planeta. Uma delas é que, quando se perde gelo, a superfície escura absorve mais radiação solar e esquenta mais”, explica Shea.
Devido à sua altitude, o Terceiro Polo absorve energia do ar quente carregado de umidade em ascensão.
“O ar nas montanhas de grande altitude é muito seco porque faz frio. Mas com um pouco de aquecimento esse ar pode conter mais vapor d’água, que é um gás de efeito estufa e, por isso, o ar dessas montanhas elevadas começa a reter mais calor”.
Por outro lado, partículas de carbono negro (ou fuligem) que viajam na atmosfera e são produto da combustão de biomassa ou de combustíveis fósseis podem se depositar nas geleiras, escurecendo-as e fazendo com que absorvam mais radiação solar.
Por que a perda de gelo pode afetar mais de um bilhão de pessoas?
A demanda por água continua a crescer na Ásia, impulsionada pelo crescimento populacional e pela rápida urbanização.
A Ásia é o continente com o menor volume de recursos renováveis de água doce por pessoa, de acordo com dados do Aquastat, projeto da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês).
A grande preocupação é que os países mais poderosos do Terceiro Polo, China e Índia, aproveitem sua posição privilegiada rio acima para desviar água ou instalar represas que afetem a disponibilidade em nações localizadas rio abaixo, como Bangladesh, Mianmar e Camboja.
A gigantesca barragem das Três Gargantas, inaugurada pela China no rio Yangtze em 2003, é um exemplo das grandes obras de infraestrutura com as quais o gigante asiático busca satisfazer sua demanda insaciável de energia.
Outros projetos chineses de represas para os rios Mekong e Irawady foram abandonados devido à oposição do Camboja e Mianmar.
“Os alimentos e a água são essenciais para a saúde humana. A escassez de qualquer um desses recursos levará provavelmente a novas migrações e conflitos”, diz Shea.
Como as geleiras podem ser protegidas?
Não se sabe com que rapidez a perda de geleiras afetará o fluxo dos rios, uma vez que esses cursos d’água também são abastecidos pela chuva e fontes subterrâneas.
A princípio, o derretimento do gelo aumentará o volume de água nos rios, mas à medida que as geleiras continuarem a diminuir em volume, sua contribuição para os rios também diminuirá.
“Acreditamos que vamos ver isso em todos os grandes rios do HKH durante este século”, estima Shea.
Tanto Sinisalo quanto Shea concordam que a solução está em reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa.
“Precisamos de um programa global, como o que enviou o primeiro homem à Lua, para eliminar nossa dependência dos combustíveis fósseis”, diz Shea, acrescentando que as comunidades vulneráveis devem ser protegidas para que a transição “seja mais justa e equilibrada”.
“É algo ambicioso, mas o aumento da consciência sobre as mudanças climáticas e o empenho do movimento dos jovens me dão alguma esperança.”
Segundo o especialista canadense, o que está acontecendo com as geleiras do HKH é “deprimente e assustador”.
“Os impactos das mudanças climáticas são implacáveis e continuarão a chegar”, afirma Shea à BBC News Mundo.
“As geleiras são uma bela parte das cadeias de montanhas do mundo, é triste perdê-las”, acrescenta.
“Mas o medo que sentimos diante do que estamos vendo é uma emoção boa, porque nos levará a agir.”
Fonte: G1