A quantidade de marfins de elefante, chifres de rinoceronte e escamas de pangolim interceptadas pelas autoridades em 2020 foi muito menor em comparação com os cinco anos anteriores, de acordo com análise realizada pelo Centro de Estudos de Defesa Avançados (C4ADS, na sigla em inglês) para a National Geographic. A pandemia do novo coronavírus reprimiu a atividade dos traficantes no transporte internacional de produtos derivados de animais silvestres e também o trabalho de fiscalização, de acordo com o C4ADS, organização sem fins lucrativos dos Estados Unidos que analisa questões de segurança transnacional.
Tanto o número de apreensões quanto o peso das cargas apreendidas despencaram, o que sugere que, mesmo se as partes de animais silvestres tenham sido transportadas entre a África e a Ásia em lotes menores, o índice geral de tráfico entre os continentes caiu. No entanto, alguns especialistas em vida selvagem observam que o comércio on-line permaneceu intenso durante a pandemia e que a caça ilegal aumentou em alguns locais.
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Segundo Faith Hornor, gestor do programa C4ADS que conduziu a análise, a estimativa de apreensões desses três produtos ilegais (marfim, chifre de rinoceronte e escama de pangolim) não representa o que está acontecendo com o comércio ilícito de animais silvestres, mas é um bom indicador das tendências do comércio intercontinental de animais silvestres entre a África e a Ásia, onde essas três mercadorias são particularmente valorizadas.
Escamas de pangolim e chifres de rinoceronte são utilizados em medicinas tradicionais, principalmente na China e no Vietnã, e tanto o marfim quanto os chifres de rinoceronte são procurados na China e em outros lugares para a produção de esculturas. De acordo com o C4ADS, as apreensões de marfim, chifres de rinoceronte e escamas de pangolim no mundo todo foram, em média, quase 530 por ano entre 2015 e 2019. Em 2020, houve 466 apreensões, bem abaixo da máxima, de 964, em 2019. Os números representam todos os incidentes registrados por funcionários de alfândegas ou descritos em reportagens da mídia produzidas em até 15 idiomas.
Mas um recente incidente surpreendente na Nigéria – um centro de tráfico de animais silvestres conhecido por ser a fonte de um grande número de apreensões de pangolins ligadas à África – pode ser um sinal do que está por vir conforme as restrições relacionadas à pandemia vão sendo suspensas. Em janeiro, funcionários da alfândega nigeriana em Lagos inspecionavam um contêiner de seis metros identificado como “acessórios para móveis”. Durante a inspeção, eles encontraram 162 sacos de escamas de pangolim escondidos atrás de um carregamento de madeira. Ao todo, pesavam mais de 8,6 mil quilos, equivalente a milhares de pangolins mortos.
Outros 57 sacos continham diversas outras estruturas de animais silvestres, incluindo marfins de elefante e ossos de leão, um substituto cada vez mais popular na medicina tradicional chinesa para ossos de tigre, agora difíceis de encontrar. A remessa tinha como destino Haiphong, no Vietnã.
“É um retrato do que está por vir” à medida que as viagens são retomadas, diz Steve Carmody, chefe de investigações da Comissão de Justiça para a Vida Selvagem (WJC, na sigla em inglês), organização sem fins lucrativos com sede em Haia, na Holanda, que trabalha para denunciar redes criminosas. O incidente também parece confirmar o que os comerciantes ilegais têm dito aos agentes secretos da WJC: que eles estão estocando produtos derivados de animais silvestres por conta das interrupções causadas pela pandemia.
“Sabemos que os traficantes estão estocando produtos não apenas na África, mas também na Ásia –Vietnã, Laos e Camboja – em grandes quantidades”, afirma Carmody, que não participou da análise do C4ADS. A preocupação agora, ele acrescenta, é que o aumento de viagens aéreas e de outros meios de transporte levará a uma rápida venda do contrabando armazenado, e a demanda reprimida alimentará uma intensificação de caça furtiva de animais.
É possível que em 2020 os traficantes tenham dividido algumas remessas em pacotes menores para evitar a detecção. Mas se o volume total dos pacotes fosse semelhante, apenas divididos em remessas individuais menores, provavelmente teria ocorrido um aumento nas apreensões, mesmo com alguma redução na capacidade de fiscalização, diz Hornor.
As escamas de pangolim apreendidas em 2020 totalizaram cerca de 20 toneladas, ante cerca de 100 toneladas em 2019. Em questão de peso, chifres de rinoceronte apreendidos em 2020 atingiram menos de um décimo do calculado em 2019. E embora o peso médio das remessas de marfim apreendidas tenha diminuído de maneira geral durante os últimos seis anos, houve uma queda substancial de 72% em 2020.
O que os dados da apreensão revelam
O tráfico de animais silvestres não está reduzindo, e alguns pesquisadores alertam que não se deve tirar conclusões definitivas com base apenas em dados de apreensão.
De acordo com Chris Shepherd – diretor executivo da Monitor, ONG dedicada a interromper o comércio ilegal e insustentável de animais silvestres –, em alguns locais, os fiscais podem ter sido redirecionados para tarefas relacionadas à covid-19, limitando a capacidade de detectar ou relatar carregamentos ilícitos. “Há uma série de razões pelas quais ocorreu um declínio nos casos relatados, e mais pesquisas sobre essas questões são necessárias.”
Alguns pesquisadores relatam um aumento em outros indicadores de crimes contra a vida selvagem, incluindo números de caça ilegal e vendas on-line de animais ou de suas partes, o que mostra a dificuldade em tirar conclusões apenas a partir de dados de apreensão.
Durante o ano de 2020, “não vimos nenhuma alteração no movimento dos mercados on-line, onde muitas dessas negociações são feitas”, esclareceu Gretchen Peters, fundadora da Alliance to Counter Crime Online (ACCO), uma rede de pesquisadores sem fins lucrativos que atua no combate ao crime organizado e no monitoramento de publicidade de bens ilícitos em plataformas de mídia social e sites de comércio eletrônico. Ela acrescenta que também não houve “diminuição no número de criminosos ofertando animais silvestres. Nenhum dos membros da ACCO relatou indícios sobre dificuldades dos traficantes em obter suprimentos”.
Patricia Tricorache, especialista em comércio ilegal de animais silvestres e membro da ACCO, conta que, em 2020, houve um aumento de anúncios ilícitos on-line de animais de estimação exóticos, como de guepardos, de acordo com rastreamento feito por ela mesmo. Tricorache diz ainda que os guepardos costumam ser transportados de barco da Etiópia, do norte do Quênia ou da Somalilândia para o Iêmen e depois levados por terra para compradores nos estados do Golfo. As ofertas on-line e apreensões desses animais aumentaram, coletivamente, cerca de 40% no ano passado, estima a especialista. (O C4ADS não rastreia apreensões de guepardos em terra.)
Também há indícios de que a captura ilegal e a morte de animais silvestres para venda como carne de caça e consumo local continuaram – ou se intensificaram — em 2020, especialmente em Uganda, Madagascar e outros países onde a indústria do turismo colapsou e a insegurança alimentar e a pobreza pioraram. Os dados de apreensão também não consideram essa tendência.
Além disso, outros números de caça ilegal, também não refletidos nos dados de apreensão, podem ser somados. A Namíbia documentou uma diminuição constante no número de rinocerontes caçados e o Quênia não relatou nenhuma caça furtiva desses animais em 2020. Mas na África do Sul, onde bloqueios em todo o país reduziram inicialmente a caça ilegal de animais silvestres, quase 400 rinocerontes foram mortos por traficantes em busca de seus chifres em 2020.
O que a pandemia revelou
No mês passado, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas observou em um novo relatório que a pandemia forçou os traficantes de animais silvestres a depender mais do transporte de carga por vias marítimas devido a “interrupções nas viagens aéreas e menos oportunidades de contrabando em navios de passageiros”.
No entanto, segundo Faith Hornor, o C4ADS constatou que o transporte marítimo de escamas de pangolim, chifres de rinoceronte e marfim caíram de quase 4% do total, considerando todas as apreensões entre 2015 e 2019, para menos de 2% em em 2020.
Carmody afirma que as autoridades conseguiram reunir novas informações sobre traficantes de animais silvestres durante a pandemia, o que futuramente pode ajudar no trabalho de detecção do tráfico. Comerciantes tiveram que encontrar novos clientes para seus produtos ilícitos, e isso concedeu aos oficiais de justiça e a grupos como a Comissão de Justiça para a Vida Selvagem, informações sobre essas redes criminosas – Carmody diz que nos próximos meses planejam atuar com base nos dados obtidos.
“A fiscalização não termina com a apreensão de um contêiner”, diz Hornor. Também são necessárias investigações mais amplas sobre as redes criminosas e seus responsáveis, levando a prisões e condenações. Isso, conclui ela, “terá um impacto mais sistêmico para derrubar essas operações em longo prazo”.
Fonte: National Geographic Brasil