Aos 84 anos, o italiano Carlo Zacquini, missionário da Igreja Católica que chegou ao Brasil na década de 60, perdeu a conta de quantas vezes contraiu malária durante os anos que viveu com o povo yanomami na Floresta Amazônica. Por ter recorrido tantas vezes ao medicamento antimalárico cloroquina, hoje sofre um pouco com perda da audição, o que não o impede de se manter atento aos problemas atuais enfrentados pela etnia.
Até hoje, Zacquini, que se mudou em 1965 da Itália para Boa Vista, capital de Roraima, é procurado por lideranças indígenas que buscam ajuda para enfrentar invasores em seus territórios.
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Desde o último dia 10 de maio, a comunidade de Palimiú, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, está sob tensão por conta de ataques por parte de garimpeiros armados. De acordo com a Associação Yanomami Hutukara, ao menos cinco pessoas ficaram feridas, sendo quatro garimpeiros e um indígena. Policiais federais também foram alvo de disparos no local, no dia 11, quando estiveram na comunidade para apurar o ataque dos garimpeiros. Lideranças indígenas afirmam que duas crianças morreram afogadas ao fugirem dos garimpeiros.
Há relatos de um novo ataque ocorrido na noite do último domingo. E nesta quinta-feira (21/05), o Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuanna (Condisi-YY) denunciou mais uma tentativa de invasão de garimpeiros à comunidade ocorrida na noite anterior.
“É claro que estão usando armas de guerra, gás lacrimogênio, uma série de coisas. Pode ser que haja policiais no meio e militares, provavelmente”, comenta Zacquini sobre os garimpeiros que protagonizam os recentes conflitos armados na Terra Indígena Yanomami.
Em entrevista à DW Brasil, o missionário critica o abandono do governo federal, que, na visão do religios, está “literalmente do lado dos bandidos”. Para ele, o presidente Jair Bolsonaro é o “grande protetor” dos criminosos. “Ele é chamado de ‘mito’. Mas eu chamo de ‘mato’, porque ele, mais do que tudo, está ajudando a matar neste caso”, diz.
Sobre a tentativa de grupos evangélicos de fazer contato com povos isolados e de convertê-los, Zacquini diz considerar a situação absurda. “Para alguns desses missionários com quem eu tive contato, não interessa se os indígenas morrem, o importante é que sejam convertidos”, critica, embora reconheça que erros semelhantes foram cometidos pela Igreja Católica no passado.
Apesar da gravidade da situação atual dos yanomami, Zacquini acredita na resistência desse povo da floresta.
DW Brasil: Como o senhor avalia a gravidade dos ataques recentes aos yanomami?
Carlo Zacquini: A situação dificilmente poderia ser pior. Neste momento, para mim, é uma situação clara de declaração de genocídio, de extermínio, o que o governo está fazendo. E o que não está fazendo também.
É uma declaração de absoluta parcialidade. O governo está literalmente do lado dos bandidos, dos infratores da lei. E quem sabe, eu acredito, o governo esteja entre eles. Ou seja, deve haver pessoas ligadas ao governo que estão tirando proveito dessa situação. Certamente há políticos locais, pessoas que podem ser identificadas de várias formas. Isso é muito claro.
Há empresários envolvidos. A Polícia Federal sabe disso há muito tempo, são anos e anos de investigação. Eles investigam, descobrem as coisas, e não acontece nada. Pelo menos, externamente, a gente não vê nada, e a coisa continua como está. Eles até dizem que sabem, que identificaram, mas na prática não acontece nada.
A gente já chegou a saber que há pessoas ligadas ao crime organizado, brasileiro e venezuelano. Na Venezuela, há organizações muito temidas, perigosíssimas, que fazem esse trabalho também em terras indígenas. Inclusive, um certo número de venezuelanos fugiram de lá e vieram pra cá porque aqui é mais fácil.
É claro que estão usando armas de guerra, gás lacrimogênio, uma série de coisas. Pode ser que haja policiais no meio e militares, provavelmente. Há frotas de barco.
E tem o grande protetor, chamado de “mito” [ o presidente Jair Bolsonaro]. Mas eu o chamo de “mato”, porque ele, mais do que tudo, está ajudando a matar neste caso.
Há drogas circulando, inclusive no meio dos indígenas, além da bebida alcoólica, que estimula briga entre eles.
As equipes de saúde são reduzidas, insuficientes para o atendimento a todas as aldeias. Sem remédios, ou com poucos. Falta gerador para ter eletricidade para, por exemplo, conservar vacinas.
A malária está fazendo um estrago enorme. A malária tinha sido controlada e, aos poucos, nesses últimos anos, está tomando uma proporção inacreditável. Além disso, a malária em muitos casos é subnotificada por falta de equipes. Torna-se quase impossível fazer tratamento in loco porque faltam agentes, microscópio, material básico.
A tudo isso, podemos somar a destruição dos recursos alimentares, da floresta, da caça, da pesca com o peixe envenenado com mercúrio. E os garimpeiros, que têm um nível de instrução reduzido, o que necessariamente não é culpa deles, acham que estão ajudando e distribuem bolachas e fazem coisas desse tipo.
A introdução de armas entre os yanomami está causando matança entre eles. Tem alguns indígenas que se deixam iludir e são estimulados a cobiçar coisas que não fazem sentido lá e acabam colaborando com alguns garimpeiros.
A Funai (Fundação Nacional do Índio) tem cumprido o papel de proteger os indígenas?
Com tudo isso, a gente tem que enfrentar hoje o presidente da Funai [Marcelo Augusto Xavier da Silva] lutando contra os indígenas. Eu não sou advogado, mas isso deveria ser chamado de crime de responsabilidade.
Ele ainda se dedica à repressão de críticos indígenas e não indígenas, estudando formas de punir, de se vingar de denúncias que as pessoas estão tentando fazer para salvar a vida deles [indígenas].
Estou muito revoltado com essa situação toda. Estou com 84 anos, vivo aqui há mais de 50 anos, trabalhei com os yanomami e continuo trabalhando com eles, e tudo isso é impossível de suportar.
O senhor vivenciou muitos momentos da chegada dos brancos ao território yanomami?
Eu estava lá quando chegaram os primeiros peões que construíram a Perimetral Norte [A rodovia (BR-210) foi projetada no governo militar para cortar a Amazônia do Amapá ao Amazonas. Iniciada em 1973, a estrada foi construída parcialmente].
Eu vi centenas de mortes que ocorreram só num dia onde eu estava. Eu estava num lugar que dava remédio aos doentes e ficava numa base onde todos podiam eventualmente pedir socorro. Mas muitos não puderam pedir socorro, não tiveram forças para chegar lá, morreram no caminho, no meio do mato. Eu encontrei ossadas de yanomami abandonadas no meio do mato. E os yanomami nunca fariam isso, porque é uma questão das crenças deles, uma coisa dessas é inadmissível. Eles não tinham condição nem de carregar os doentes.
As curas tradicionais deles não faziam nenhum efeito frente àqueles novos inimigos, que eram vírus desconhecidos e contra os quais eles não tinham anticorpos.
Na opinião do senhor, eles conseguirão resistir às ameaças atuais?
Eles estão distribuídos em um pouco mais de 300 aldeias hoje numa área muito grande. Nem toda ela foi invadida, embora a maior parte da área seja afetada pelos invasores, mesmo que indiretamente.
As epidemias não param. Os indígenas acabam se deslocando, fugindo para outras aldeias e levando sem querer os vírus que receberam dos invasores.
Há lugares onde, por enquanto, não foi descoberto ouro ou minas que atraíssem invasores. Ainda há alguns lugares tranquilos.
Alguns serviços de saúde que foram montados com a ajuda da sociedade civil renderam resultados muito interessantes. Hoje a população yanomami é de quase 30 mil. Então não é fácil acabar com tudo.
Acredito que eles irão aguentar, sim. Uma parte deles já está tentando formas de sobreviver, de ter colaborações com pessoas de boa vontade e ajuda de fora do governo.
O que trouxe o senhor, há mais de 50 anos, ao Brasil, e o que provocou essa aproximação com os yanomami?
Eu vim ao Brasil mandado pelos meus superiores. Eu sou um missionário católico. Eu vim para a periferia de Boa Vista para montar uma escola profissional e dar aulas.
A minha sorte foi que, logo que cheguei, encontrei líderes indígenas e comecei a entender como estava a situação aqui. Fiquei chocado por uma série de coisas.
Quatro meses depois que eu cheguei, em 1º de maio de 1965, estive numa localidade onde havia aparecido uns indígenas “bravos”, como as pessoas diziam. Eu tive a sorte de poder ficar nesse lugar por três dias com esse grupo. Esse contato me deixou realmente emocionado, transtornado, e me fez perder todo o interesse pela atividade que havia me trazido ao Brasil.
Logo que consegui me liberar, acabei indo viver com os yanomami. Fiquei muitos anos lá e me mudei, ajudei a criar uma associação da sociedade civil que se chamava Comissão Pela Criação do Parque Yanomami (CCPY). A luta se estendeu porque a demarcação da Terra Indígena demorava muito, era algo extremamente complicado.
Nós nos dedicamos também a fazer um plano de saúde. Naquela época, eu já dizia que tínhamos que tentar ajudar o povo a sobreviver, que não adiantaria ter a terra demarcada com um povo morto. Graças a nossa atividade de saúde se pôde evitar, quando começou a primeira grande invasão de garimpeiros nos anos de 1980, um grande número de mortes de indígenas. Não morreram porque estavam vacinados.
Mais tarde, a pedido de uma liderança indígena, começamos a nos dedicar à questão do ensino, da alfabetização na língua deles e, depois, em português.
Há muitos grupos evangélicos que buscam contato com povos indígenas, inclusive os isolados, para convertê-los. O que o senhor acha desse tipo de trabalho missionário?
Eu acho um absurdo.
Para alguns desses missionários com quem eu tive contato não interessa se os indígenas morrem, o importante é que sejam convertidos. É uma inversão de valores, é uma coisa totalmente absurda.
No passado, a Igreja Católica não fez muito melhor. Eu sei que teve muitos casos que foram muito criticados, até mesmo o papa reconheceu isso.
Eu acho que, hoje, a mentalidade deveria ser diferente. Nem todos ainda assumiram essa mentalidade, e tem alguns que continuam ainda agarrados aos tempos da “descoberta” do Brasil.
Hoje temos uma missionária que vê Jesus em cima da goiabeira. Eu acho que ela [Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] da tem, inclusive, muito poder sobre as atividades da Funai e incentiva outros setores do governo a agir nesse sentido.
Fonte: Deutsche Welle